Retina Desgastada
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16 de julho de 2021

Shinjū

silent-hill-2

O impressionante Silent Hill 2 esteve na minha mira por um longo tempo no PC. Lembro claramente quando, depois de procurar incessantemente, esbarrei no jogo vendendo em versão pirata em um camelô em um bairro onde não deveria estar, atendendo a uma reunião que pouco rendeu. Voltei para casa com um tesouro. Entretanto, um dos quatro discos estava com defeito e foram outros longos meses até encontrar o jogo novamente na internet em P2P. Eram tempos estranhos. Até hoje, é impossível encontrar essa pérola da Konami na plataforma sem mergulhar em uma jornada obscura.

Lembro também da imersão proporcionada como jamais tinha visto antes. Lado a lado com James, me esgueirei por aqueles corredores imundos. Ao contrário dele, percebi gradativamente a armadilha da mente, o que tudo aquilo significava: James Sunderland, meu protagonista, meu avatar naquele mundo grotesco, era culpado até a raiz de sua alma pela morte de sua esposa doente. Impaciente com seu estado terminal, ele praticou uma eutanásia mais motivada por seus desejos egoístas do que pela compaixão. Apesar do horror, conduzi James com piedade no coração até aquele que talvez seja o melhor final de Silent Hill 2.

O que eu não esperava era que quase duas décadas depois de minha viagem (a memória agora tão enevoada quanto a cidade do julgamento), o acaso me colocaria de frente com uma informação que muda minha percepção do jogo e de James.

Em um tuíte publicado em 2012, Masahiro Ito, diretor de arte de Silent Hill 2 declarava textualmente: "o corpo de Mary está no banco traseiro do carro de James, não no porta-malas, se eu me lembro corretamente".

Todo aquele tempo.

Todo aquele tempo. Não três anos antes, como James afirma ou se recorda, mas uma questão de dias, ou horas. Esse era o período que realmente separava o culpado de sua vítima. Já era evidente antes que o protagonista não era um narrador confiável, que a carta estava em branco, mas nunca me passou pela cabeça que a carta fosse impossível de existir ou que James estivesse em um processo de negação tão profundo.

Essa afirmação é comprovada por um diálogo dentro do jogo, quando James menciona o aniversário de oito anos de Laura, como Mary teria enviado um cartão dando os parabéns para a menina, ciente de que não estaria viva para fazer isso pessoalmente. Laura rebate que seu aniversário foi uma semana antes, para um confuso James que se questiona, talvez pela única vez, se Mary tinha morrido mesmo três anos no passado.

Guy Cihi, dublador de James, comentou o contexto do jogo em um playthrough e reiterou que Mary estava no carro, uma referência ao ritual do Shinjū, lamentavelmente comum na cultura japonesa. O duplo suicídio forçado seria uma forma de James e Mary se reencontrarem no pós-vida. Exceto que aqui James teria recuado em sua decisão e não teria tomado a própria vida. Atormentado pelo ato, incapaz de seguir em frente, ele viaja para Silent Hill para cumprir seu destino e é nesse ponto que entra o jogador.

Silent Hill 2 é uma obra com múltiplas camadas, que mexe com abismos muito mais profundos do que ameaças cósmicas do limiar da realidade. É um jogo que lida com os porões da mente humana, da culpa, da dor, do egoísmo, um Crime e Castigo da Era Eletrônica que ainda nos apresenta um aspecto macabro e doentio da sociedade oriental, sem alienar seu público ocidental. Um pesadelo que nunca cessa. Um jogo jamais ultrapassado.

Todo aquele tempo.

Ouvindo: Therapy - A Moment of Clarity

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