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17 de dezembro de 2020

Topa Tudo Por Dinheiro

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RowdyRogan é mais uma dessas crianças-prodígio que fazem sucesso nas plataformas de vídeo. Focado em transmissões de Call of Duty: Warzone, o pequeno Rogan tem apenas seis anos, mas já arrebatou 136 mil inscritos no YouTube e 98 mil no Twitch. Por razões que se tornarão óbvias, não publico aqui o endereço de seus canais.

A despeito de Call of Duty: Warzone ter uma classificação indicativa para maiores de 18 anos e a própria Activision estabelecer que menores de 13 anos não podem ter uma conta em seus serviços.

A despeito do Google estabelecer uma idade mínima de 13 anos para ter uma conta no YouTube.

A despeito do Twitch estabelecer uma idade mínima de 13 anos para ter uma conta no serviço.

A despeito de tudo  isso, esse nem chega a ser o cerne da questão, uma vez que os pais supostamente se responsabilizam, administram sua carreira e controlam suas contas nas plataformas e nas redes sociais.

O problema a seguir é mais profundo, envolve mentiras, obsessão pela fama e busca de patrocinadores.

RowdyRogan ganhou manchetes e subiu na visibilidade das redes sociais em 9 de dezembro, após ter sido banido ao vivo durante uma transmissão do jogo. Foi o estopim para o surgimento de uma hashtag sugerindo que a produtora Activision revogasse a decisão e uma campanha contra a empresa, como se ela tivesse cometido um equívoco por ter aplicado seus termos de uso, por ter "destruído os sonhos de uma criança".

O garoto chorou ao vivo, com a cabeça encostada no peito de um pai desolado e sua dor pôde ser sentida por milhares de espectadores naquele momento e por muitos mais depois, na medida em que a campanha tomava vulto.

choro

Infelizmente, era tudo uma orquestrada mentira.

Viral Como Uma Doença

Em uma apuração exemplar, a PC Gamer desmascarou a fraude e os motivos que levaram a família a esse gesto de marketing.

RowdyRogan nunca foi banido pela Activision. Todo o movimento foi realizado com o intuito de chamar a atenção de uma marca de roupas para conseguir patrocínio, em uma espécie de concurso de fama e prestígio, um meta-Battle Royale em que apenas os influenciadores mais virais seriam contemplados com a vitória.

FaZe Clan é o nome de uma organização de esportes eletrônicos, mas também o nome de um fenômeno cultural que vende um estilo de vida, que abrange roupas, artigos esportivos, memes, personalidades e mais em um grande e poderoso caldeirão de tendências. Para muitos, fazer parte do FaZe Clan é fazer parte de um universo fechado, um clube privado que separa os streamers de elite da grande massa que busca um lugar ao sol em um mercado mais do que competitivo.

FaZe

Ciente do impacto que exerce sobre aqueles que consomem sua marca, a FaZe realiza uma competição anual, um jogo voraz que garante um lugar no seu Olimpo. Milhares de participantes aceitam disputar desafios online em rodadas cada vez mais competitivas e absurdas, até que apenas cinco restantes sejam contemplados com a honra máxima de ostentar o selo de aprovação da FaZe e se tornar uma estrela sobre os demais.

Nessa brutal luta por seus quinze minutos de fama, RowdyRogan se classificou entre os 20 finalistas da competição da FaZe. O desafio final determinaria os escolhidos. E o desafio final era "criar um conteúdo que se torne viral".

Por isso, Rogan "chorou" ao vivo. Por isso, seus pais sustentaram o "banimento" por dias a fio, enquanto seus fãs, seguidores e pessoas que estavam apenas exercendo a boa e velha empatia levantavam uma mobilização vazia na internet.

Nas palavras de seu pai, Harry Drew, "era o sonho de Rogan fazer parte da FaZe. Eu não sabia quem era a FaZe até um ano e meio atrás. Eu sou um fã da FaZe agora". Não há qualquer pudor em admitir o engodo e o seu canal no YouTube divulgou uma confissão que mais soa como uma celebração do que um pedido de desculpas. O vídeo mostra o ensaio para o choro e o preparo envolvendo todos os membros da família. Eles são virais agora.

A opinião da mãe não vai muito longe tampouco. Ela acredita que o sucesso do filho pode abrir portas para mais jogadores infantis. Ela afirma que "depois que isso se tornou viral e vimos todo o apoio incrível, o positivo supera em muito o negativo, então no mínimo isso está dizendo à FaZe que eles estão prontos, vamos fazer isso, o mundo apoia Rogan".

Isso é Muito Cyberpunk

Cyberpunk

O que temos aqui são múltiplas camadas de distopia. Uma criança de seis anos jogando um título de adultos sob a tutela dos pais em plataformas que não oferecem qualquer tipo de orientação sobre as implicações e apenas chancelam em nome de uma audiência na casa de centenas de milhares de pessoas. Temos um vasto contingente de pessoas em todos os cantos do mundo que poderiam estar desfrutando dessa experiência pessoalmente, mas trocam esse tempo pelo consumo passivo de uma criança jogando, um micro-celebridade de uma nova era digital, glorificado por suas habilidades em uma simulação de guerra.

Do outro lado da balança temos uma entidade corporativa cujo valor intrínseco advém justamente do fato de múltiplas pessoas atribuírem esse valor porque múltiplas pessoas também estão atribuindo valor, gerando um pensamento coletivo de que FaZe é estilo, FaZe é vida ou algo assim.

Uma família disposta a cair nas graças dessa força memética se submete a forjar uma realidade negativa para canibalizar empatia em forma de moedas de popularidade. É a comoção transformada em commodity, a gamificação do ultraje. Que lições de moralidade essa criança em formação irá tirar de todo esse teatro? Não há limites na escalada para o sucesso? Pão e circo em arenas virtuais destroçam reputações em troca de visualizações e curtidas.

Desde a reportagem da PC Gamer, RowdyRogan ganhou mais 4 mil inscritos no YouTube e 3 mil no Twitch.

Ouvindo: Iron Maiden - Out of the Silent Planet

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