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23 de maio de 2020

De Uma Bola Roubada a Ninjas Espaciais: a História da Digital Extremes

Warframe - Kuva Fortress

No alvorecer dos anos 90, um punhado de programadores impressionava o mundo com aquilo que eles conseguiam fazer usando algumas linhas de código. Jogos totalmente 3D ainda eram um sonho dourado e as famosas "placas aceleradoras" estavam nos laboratórios de fabricantes de hardware. Era a chamada demo scene ou cena demo, em que, com arquivos de 2kb, escovadores de código conseguiam visuais lisérgicos, com direito a música e tudo.

Tim Sweeney estava impressionado com o que aqueles programadores conseguiam fazer e tentou recrutar os talentos da finlandesa Future Crew para seu estúdio. Apenas um dos gênios aceitou a proposta e viajou para os Estados Unidos. Ele levava na mala a demonstração de um jogo inacabado de pinball. A aliança não foi pra frente e Sweeney não conseguiu sequer convencer o programador a terminar o jogo e lançá-lo comercialmente. Desde aquela época, o fundador da Epic MegaGames (esse era o nome da época) já demonstrava tino para negócios e uma persistência que beirava a falta de ética. Ele não se deu por vencido.

E é nesse momento que entra o personagem principal de nossa história. James Schmalz era um programador prodígio canadense, que ainda estava na faculdade. Ele já havia trabalhado com a Epic MegaGames em outros títulos. Sweeney mostrou para ele o demo inacabado do jogo de pinball e lhe conferiu a missão de transformar aquilo em um produto, à revelia de seu criador original. Sem acesso ao código fonte, Schmalz refez o jogo do zero. Usando Assembly. Em nove meses. Sozinho. Enquanto ainda cursava as aulas normais de Engenharia Mecânica.

James Schmalz

Em 1993, era lançado Epic Pinball, um dos mais lucrativos jogos do gênero da história do PC. De royalties pelo título, Schmalz chegou a fazer 120 mil dólares ao mês, cem vezes mais o que ele faturava naquele período. Sweeney revelou que o título foi o shareware mais bem-sucedido da produtora e afirmou que o programador canadense tirou mais de um milhão de dólares de direitos no primeiro ano de vendas.

Empolgado, por razões óbvias, com sua nova carreira, Schmalz se formou mas fundou sua própria empresa, a Digital Extremes e resolveu criar jogos. Naquele mesmo ano, ele trabalharia com a Epic no desenvolvimento de uma franquia que seria seminal para a indústria: Unreal. O projeto foi bancado pelos lucros de Epic Pinball e seu sucessor, Extreme Pinball, também da Digital Extremes. Ironicamente, a História colocaria todos os holofotes em Sweeney e no designer Cliff Bleszinski, mas nos bastidores a desenvolvedora do jovem canadense estava presente. Em 1997, o próprio Schmalz afirmava:

Eu fiz o terreno primeiro. Um terreno do tipo Magic Carpet ... Eu estava experimentando um jogo tipo caverna, tipo robô, e progredi para a técnica de malha contínua que temos agora, então mudei de cavernas para exteriores. Naquela época, eu tinha essas criaturas poligonais, como este dragão voando por aí - essa foi a primeira boa criatura poligonal que criamos. A partir daí, adicionamos prédios, e o Tim começou a fazer este editor para fazer os prédios - depois disso, decolou ... Então comecei a focar nas criaturas e nas obras de arte, e Tim assumiu a engine. O Cliff entrou em cena ... Como o editor estava facilitando a montagem das estruturas, tínhamos a ferramenta para fazer as áreas internas, para que houvesse menos foco nas coisas externas.

Unreal

Schmalz não guarda qualquer mágoa dessa época. Ele mesmo admite que tudo que ele aprendeu de programação em 3D ele deve a Sweeney. Um era o mestre, o outro era o aprendiz. A Unreal Engine evoluiu muito rápido. Em outra entrevista, o canadense declara:

Basicamente, parei de programar porque ele passou rapidamente por mim, então me concentrei em design e arte. Eu mesmo tive o gosto da programação em 3D, mas tive a grande experiência de poder trabalhar com ele, pois ele foi pioneiro em todas as coisas em que foi pioneiro na época.

A Digital Extremes permaneceria na sombra da série Unreal por seis anos, participando do desenvolvimento de todos os Unreal Tournament e da versão para Xbox, batizada de Unreal Championship. O estúdio tentaria seu primeiro voo longe da Epic com o obscuro Pariah. O fracasso comercial do título obrigou a desenvolvedora a mudar de planos para sua "continuação". WarPath, que deveria ser uma sequência, foi lançado com alterações que o separaram do jogo anterior, mas não ajudaram em nada em suas vendas.

Dark Sector

Em 2008, o estúdio tentou seu projeto mais ambicioso até então: Dark Sector. Era o tudo ou nada da Digital Extremes. O projeto inicial deveria ser um MMO de ficção-científica, com combates espaciais e tudo mais. O jogo deveria ter "os intensos elementos de ação do Unreal Tournament com o escopo e a evolução dos personagens de um universo online persistente".

Entretanto, a ideia foi sendo cortada, cortada, até chegar na versão final, bem aquém da meta original. Alguns dos elementos que ficaram seriam vistos novamente anos depois: o protagonista utilizava uma armadura tecnorgânica, uma arma chamada Glaive e atendia pelo nome de Tenno.

Ainda assim, o título também naufragou no mercado. Sem rumo, a desenvolvedora retornou para seu papel de suporte, tendo trabalhado em ports ou apoio para vários títulos que acabaram se tornando famosos. Eles levaram Bioshock para o PlayStation 3, desenvolveram o multiplayer de Bioshock 2 e Homefront. Em 2012, foram contratados pela 2K Games para fazerem a continuação The Darkness II. Nas palavras de Schmalz:

Então acabamos trabalhando em coisas por contrato. Coisas incríveis, algumas coisas horríveis. Fizemos isso por anos para pagar as contas (...) em vários momentos estávamos muito perto da falência, mas finalmente conseguimos seguir em frente.

A Digital Extremes sentia falta de um sucesso para chamar de seu. Seus desenvolvedores estavam com sangue nos olhos.

Acorde, Tenno

Em um momento de equilíbrio financeiro da Digital Extremes, Schmalz se virou para seu time e deu carta branca para apresentarem um projeto novo, aquilo que eles gostariam de fazer do fundo de seus corações. A primeira reação foi retornar à proposta inicial de Dark Sector: um MMO épico de ficção-científica. Anos haviam se passado, mas a vontade permanecia.

Uma parte da Digital Extremes foi escalada para perseguir esse sonho. Outra metade foi designada para mais um contrato: a adaptação oficial do reboot de Star Trek.

Star Trek

O protótipo do que viria a ser Warframe foi desenvolvido em apenas dois meses, para que fosse apresentado na GDC de março de 2012, em busca de uma produtora interessada em bancar o jogo. Voltaram do evento de mãos vazias. Nenhuma produtora se interessou pelo conceito. As empresas ocidentais explicaram que não havia interesse no mercado por um cenário de ficção-científica. Uma produtora sul-coreana, experiente em títulos F2P, explicou que não tinha como o projeto dar certo, que os estúdios ocidentais não sabiam como dar suporte a jogos infinitos. Uma produtora chegou a declarar que Warframe seria um fracasso, porque era focado em PvE e o público só consumia PvP.

A esta altura do campeonato, James Schmalz apostou novamente. O "não" ele já tinha, como se costuma dizer. Foi decidido que a própria Digital Extremes publicaria. Em nove meses, assim como foi feito Epic Pinball, a primeira versão jogável de Warframe estava pronta, com o codinome de Lotus.

Em Outubro de 2012, o beta fechado gerou mais feedback para o desenvolvimento do jogo. Os jogadores reclamaram de um item pago que permitia desbloquear completamente a árvore de habilidades do personagem, caracterizando um pay-to-win. A Digital Extremes ouviu as reclamações e removeu a venda. Desde então, Warframe foi construído e vem sendo atualizado mantendo a máxima de que nada no jogo precisa ser comprado e todos os elementos podem ser adquiridos jogando.

Warframe 01Warframe 04

Apesar das boas intenções, o lançamento foi conturbado em 2013. A mídia não prestigiava jogos F2P, vistos em sua maior parte, como caça-níqueis de qualidade duvidosa. Não era uma visão muito longe da verdade, mas o preconceito atrapalhou a cobertura inicial do jogo. O anúncio de Destiny, o gigante da Activision e da Bungie, que também seria um título de ficção-científica persistente e online gerou comparações desfavoráveis.

Com o fracasso de Star Trek, novos contratos sumiram e o futuro da Digital Extremes dependia agora do sucesso de Warframe. Demissões aconteceram no período de incerteza.

Enquanto a Digital Extremes já avaliava por quanto tempo conseguiria manter o jogo funcionando com uma contagem tão baixa de jogadores, o título via sua popularidade aumentando, impulsionada pelo boca a boca. Sua base de usuários era pequena, mas devotada. A cobertura do saudoso Total Biscuit durante o beta ajudou a aumentar o alcance do jogo e os números começaram a subir.

O ponto de virada aconteceu com o lançamento do jogo no Steam: em questão de dias, Warframe estava finalmente dando lucro.

Warframe 02

Com a segurança financeira recuperada, a Digital Extremes tinha agora fôlego para recontratar funcionários e se dedicar integralmente ao seu próprio projeto, adicionando novos conteúdos e funcionalidades pelos anos que se seguiram, aumentando cada vez a fidelidade de seus usuários.

Trabalhar cinco anos em um jogo que pode não mudar nada não é empolgante, mas quando eles têm essas atualizações enormes que realmente mudam a direção de onde o jogo está indo, isso excita os fãs e a equipe de desenvolvimento para manter as coisas frescas na mente de todos. Todo mundo tem que ser apaixonado por isso de forma contínua, não apenas os fãs, mas a equipe de desenvolvimento. Se eles perderem a paixão, as atualizações não serão tão empolgantes e apaixonadas.

Em 2016, aconteceu a mais inesperada das reviravoltas. A chinesa Leyou, até então uma gigante no varejo de carne de frango, daria uma guinada em seus negócios e compraria 97% das ações da Digital Extremes, se tornando a proprietária absoluta do estúdio e passando a ser uma empresa focada em jogos eletrônicos. Nada mudou no desenvolvimento de Warframe e suas atualizações.

Warframe 03

Essa é uma história que está longe de acabar. Em 2020, o jogo está novamente passando por mudanças profundas, adicionando novas mecânicas e explorando cada vez mais longe uma mitologia que vem sendo construída ao longo de sete anos. De acordo com Rebecca Ford, diretora de comunidade e dubladora da personagem Lotus:

A ambição do Warframe não é ser apenas um shooter de corredor ou um shooter de mundo aberto. É para ser como Guerra nas Estrelas. Não estou dizendo que vamos conseguir isso. Mas nossas ambições estão nesse nível. Não queremos fazer Warframe 2 ou 3. Não queremos fazer outro jogo. Queremos que este jogo seja gigante e, para as pessoas que o amam e o jogam como seu principal hobby, queremos que o Warframe seja aquilo que eles vão amar por mais dez anos.

Com 227 horas vividas nesse universo, testemunha ocular de arcos surpreendentes e apaixonado por suas decisões de arte e construção de mundo, tudo que posso dizer é: que venha mais Warframe, que venha mais Digital Extremes.

Ouvindo: Nightwish - Sahara

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