Retina Desgastada
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29 de janeiro de 2023

Jogando: Valley

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Sou um grande fã de Citadel: Forged With Fire, o survivalcraft injustiçado da Blue Isle Studios. Passei muitos bons momentos naquele mundo fantástico, muitos deles ao lado de meu filho. Lamentei quando descobri que a desenvolvedora tentou prolongar sua vida útil de forma meio desastrosa, mas lamentei ainda mais quando descobri que o projeto seguinte do estúdio seria um FPS multiplayer absolutamente genérico, um clone do já extinto Lawbreakers.

A Blue Isle Studios aparentemente busca singrar diferentes águas, tentando sempre emplacar um sucesso de vendas, se deixando levar por tendências. Seu título de estreia pegava carona no fenômeno do Slender Man, por exemplo.

Tudo isso torna ainda mais inesperado que o estúdio tenha produzido Valley. Simplesmente porque esse jogo é uma obra-prima, uma pérola esquecida que, por muito pouco, não entra em minha Lista de Favoritos. Nesse momento, a Blue Isle Studios tocou o céu e esteve a um passo de colocar seu nome ao lado de Portal, como um daqueles jogos em que você sente euforia ao jogar, em que você duvida que seu personagem esteja realmente fazendo aquilo.

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Era Uma Vez Um Vale...

O jogo parte de uma premissa absolutamente frágil: uma jovem arqueóloga sai em busca de um artefato sagrado que comprovaria a existência da alma. Seguindo pistas que ela obteve antes mesmo da aventura começar, ela se embrenha no interior da Montanhas Rochosas, procurando um vale secreto onde repousaria a Semente da Vida. Esse tipo de ponto de partida poderia resultar em dezenas de tramas frouxas ou constrangedoras, mas aqui a Blue Isle Studios consegue transformar esse clichê em algo extremamente palpável, sem o qual o impacto do final sequer seria possível. A sensação de "consegui" em seu último instante é profunda e um sinal inegável de que me envolvi com a história e ela se tornou plausível.

A reviravolta já começa a se fazer logo nos minutos iniciais. O tal vale que dá nome ao jogo não é tão secreto assim: ele foi explorado em um projeto militar do governo dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. O que se esconde aqui era uma tentativa de terminar o conflito com algo mais poderoso que a Bomba Nuclear: o Projeto Pendulum.

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Dessa iniciativa, surgiu outro projeto singular, batizado de Pathfinder. É aqui que Valley introduz suas mecânicas. Um Pathfinder é um soldado que veste um exoesqueleto que lhe permite atingir velocidades inacreditáveis e dar saltos impossíveis, sem sofrer danos. Obviamente, nossa protagonista encontra um desses trajes ainda operacional e essa será a nossa interação com esse mundo: a grandes saltos, em velocidades muitas vezes extremas.

Aqui se percebe o talento que a desenvolvedora utilizaria logo depois em Citadel: construir mapas imensos que passam prazer em sua beleza. O mundo não é aberto, na maioria dos capítulos, mas é gigantesco para que jogador se sinta um verdadeiro explorador, correndo, saltando e vasculhando seus cantos.

Tempos de Caserna

Essa exuberância natural do vale é peça fundamental para você comprar a ideia da Semente da Vida. O lugar precisa ser mágico, precisa ser pulsante, é um vale excepcional como nenhum outro e a desenvolvedora entrega. Em contrapartida, o jogo alterna esses capítulos a céu aberto com capítulos passados dentro do complexo militar do Projeto Pendulum ou dentro de ruínas antigas. É um Tomb Raider com Mecha, mas sem combates tradicionais.

A arquitetura humana também é portentosa, como que em contraste com aquilo que a Natureza fez. As coisas erguidas por mãos terrenas insistem em se elevar em meio a tanta pureza. As instalações se estendem até onde a vista alcança ou até as profundezas da terra, uma Aperture Science dos anos 40, ousada, invasora nesse território e, portanto, opressora. Do outro lado dessa mesma moeda, existem ruínas deixadas por uma civilização esquecida, quase como um alerta de que esse vale já sobreviveu antes às investidas do Homem e irá sobreviver novamente, como os restos de uma Torre de Babel que desafiou o que não devia.

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Junto com o traje Pathfinder, encontramos também gravações deixadas por quem trabalhou no Projeto Pendulum. Temos outra vez duas forças antagônicas: uma arqueóloga que compreendeu a necessidade de se preservar o lugar e um cientista obcecado em construir a arma definitiva. Ainda que sejam arquétipos bastante comuns em várias narrativas, suas dublagens e seus embates preservados em fitas e anotações passam personalidades únicas e uma veracidade que fogem do lugar-comum. Nós torcemos por Virginia King, nós tememos pela sanidade do doutor Fischer. Ao mesmo tempo, o cenário é repleto de pequenas notas de outros personagens secundários, contando curiosos "causos" de décadas atrás, desde o soldado que jura que correu de um urso, até o cientista que curtia trocadilhos. É um dos prazeres de parar e olhar ao redor, ao invés de apenas aproveitar a super-velocidade do traje. Todos esses elementos vão se somando para dar uma dimensão mais humana a outro jogo em que a protagonista é muda.

Ao Infinito e Além

Se existe defeito em Valley, está na dificuldade inexistente. Talvez porque a desenvolvedora não queria o peso do fracasso atrapalhando o ritmo da aventura ou talvez porque eles simplesmente não sabiam equilibrar, o fato é que eu só morri uma vez ao longo de seis horas de jogo. Considerando que boa parte da exploração é baseada em saltos insanos, é digno de nota também que não houve nenhum salto complexo em que eu tenha empacado ou algo similar. Tudo isso contribuiu para uma experiência bastante fluida, mas a falta de desafios pode afugentar determinados jogadores.

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A Blue Isle Studios tem outra qualidade que se manteve deste para Citadel: capricho na trilha sonora. Reconheci imediatamente o estilo musical nos momentos mais suaves da aventura, mas fui surpreendido pelo vigor das faixas usadas nos momentos mais frenéticos, em que corremos por longos quilômetros com nossa armadura Pathfinder ou a nervosa sequência de fuga no final (que me trouxe ótimas lembranças da conclusão de Halo e a corrida desesperada de Warthog). A trilha sonora funciona como um tempero adicional para um prato que já estava excelente.

Valley é um título curto, que acaba na hora certa, mas não abre mão de mostrar novidades até seu último capítulo. A Blue Isle Studios demonstrou aqui um pleno domínio da narrativa, das mecânicas, dos aspecto visual e também do som. Esse poderia ter sido o caminho para um grande estúdio, um caminho que lamentavelmente não foi reconhecido na sua época, não foi reconhecido no jogo seguinte e corre o risco de ser completamente esquecido nos porões do Steam. Uma desenvolvedora que atirou para todos os lados fez um grande acerto uma vez, mas poucos estavam lá para perceber.

Ouvindo: Leather Strip - Mohawk

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