Talvez haja algo de errado na Rússia. Talvez sejam as vastidões geladas e desertas de seu interior gigantesco que se estende por boa parte do hemisfério norte. Talvez seja sua história de opressão na mão de governantes com mania de grandeza e pouco apreço pelo homem comum. Talvez seja sua posição geográfica, não exatamente europeia, não exatamente asiática. Talvez seja o frio.
Mas há algo na produção artística da região que está fora do que nossa mentalidade tropical convencionou chamar de normal. É algo que se percebe em Tarkovksy. É algo que se percebe em Dostoievsky. Nos irmãos Strugatsky. Uma melancolia inerente, um toque de realismo fantástico, contrapostos por uma força de vontade férrea de superar as adversidades, uma força que se aproxima do estoicismo.
É algo que vejo novamente em 35MM. A vontade de seguir em frente, mesmo que todo o resto esteja caindo aos pedaços, mesmo que o sonho tenha acabado.
O título transita no limite entre o "walking simulator" e o survival horror e as mudanças de um gênero para outro podem acontecer quando menos se espera. Em 35MM assumimos o papel de um fotógrafo que atravessa uma Rússia em ruínas ao lado de um companheiro de estrada. Uma praga inexplicável atingiu a civilização. Mas, desta vez, não há zumbis: os afetados apenas definham e morrem, em uma velocidade que nenhum sistema de saúde é capaz de dar conta e toda forma de governo ou normalidade sucumbe. O protagonista, internado em um hospital distante, escapa da doença incólume e busca o retorno para um lar que provavelmente não está mais lá. E, ainda assim, ele caminha.
No trajeto, feito em marcha lenta por paisagens exuberantes, mas sombrias, encontramos alguns sobreviventes. Assim como pistas escassas do nível do caos que se instaurou. É como se um país inteiro tivesse se convertido na Zona de S.T.A.L.K.E.R., decadente, abandonado, amedrontador. Mas não há mutantes (ou há?) nem anomalias, apenas a solidão amarga e ameaças bastante humanas.
Os gráficos são muito detalhados e abusam de tons depressivos. A imersão é forte e os desenvolvedores soltam cenas fortes aqui e ali, sem pressa. 35MM não é um jogo para ser atravessado correndo e é um título que, assim como a franquia de Chernobyl, convida à exploração. Entender esse universo é entrar nele de cabeça, revirar gavetas, contemplar o horizonte, respirar o ar parado e vencer o medo do escuro. Os elementos de sobrevivência são escassos e não interferem na jogabilidade, o objetivo de seus criadores não é desafiar o jogador com perigos, mas fazer um passeio turístico por um espaço físico consumido pela tristeza.
Não que 35MM seja desprovido de tensão. Ela emerge em confrontos bem espaçados, mas se faz ainda mais presente nos silêncios, nas meias conversas entre o protagonista e seu parceiro, nas revelações de última hora, no final que angustia.
O jogo peca pelo ritmo irregular, que se agrava no seu terço final, onde acontecem duas batalhas seguidas. A primeira é extremamente difícil e a segunda flerta forte com o surreal. O que vem depois é anticlimático e banal, enquanto 35MM se arrasta para se redimir em um desfecho arrasador e créditos que contemplei estático.
Rússia, sede de Copa do Mundo, cemitério de conquistadores, uma teia de mistérios ocultos no seio da Pátria Mãe. O que acontece no seu subconsciente?
2 comentários:
Esse é um jogo que está na minha lista de pendências há uns meses e é uma surpresa vê-lo comentar sobre ele. Com a sua escrita e algumas screenshots, foi possível sentir algo semelhante ao que sentia ao ler suas histórias em STALKER. É como se tivesse experimentado o jogo em alguns minutos de leitura.
Comprei faz tempo e vou iniciar agora. Vamos ver se 35mm chega aos pés de Stalker na ideia de um mundo paralelo e diverso.
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