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20 de outubro de 2021

Jogando: New World

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(publicado originalmente no Gamerview)

Saiba, ó príncipe, que houve uma era perdida no início dos anos 2000 que os MMORPG reinavam supremos como gigantes entre os jogos de computador. Legiões de fãs convergiam para suas paisagens em busca de aventuras infinitas que consumiam centenas de horas. O ocaso desses colossos parecia certo, enquanto outros titãs, como os MOBAs e os Battle Royale, se erguiam para reivindicarem seu trono. Com New World, o gigante original despertou outra vez.

O primeiro título da Amazon Games, outro leviatã em sua própria estrutura, prova que o mercado está pronto para a ressurreição dos MMORPGs. Novamente, legiões de fãs vieram dos quatro cantos do mundo para explorar um novo mundo que, lamentavelmente, é mais antigo do que parece na sua superfície. New World falha em diversos aspectos, o maior deles está na falta de inovação. Entretanto, isso parece não importar tanto assim. Há sede nas fileiras, os jogadores brotam por todos os cantos.

Era Uma Vez um Estúdio

O Amazon Games foi anunciado em 2014 e é sintomático que o estúdio tenha demorado sete anos para apresentar um jogo minimamente jogável. Na ocasião do anúncio, a maior empresa de comércio eletrônico do planeta, fundada pelo ser humano mais rico do planeta, não mediu esforços: nomes como Kim Swift (criadora de Portal), Clint Hocking (Far Cry 2) e desenvolvedores de System Shock 2 foram contratados. A promessa era óbvia: gerar títulos tão rompedores de paradigmas quanto as obras anteriores de seus profissionais.

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Ironicamente, a Amazon Games também propagava um ciclo de desenvolvimento de18 a 24 meses para seus jogos. Desde o início se tornou claro que isso jamais seria alcançado. Os primeiros três jogos foram anunciados somente em 2016: Breakaway, Crucible e New World. Eles eram respectivamente um jogo multiplayer de bola, um mata-mata multiplayer de esquadrão e um MMORPG, três gêneros supostamente saturados em que os talentos do estúdio acrescentariam muito pouco.

O potencial da Amazon Games parecia perdido. Clint Hocking já havia deixado a empresa em 2015. Kim Swift pularia fora do barco em 2017. A evasão de seus principais talentos foi apenas o começo de uma sucessão de problemas. Breakaway foi cancelado antes mesmo do lançamento. Crucible chegou nas prateleiras, respirou por aparelhos durante um par de meses e depois também foi cancelado, para azar de seus raros jogadores.

O que nos leva a New World. A última esperança da Amazon Games, sua luz no final do túnel. Seria a Amazon, uma das maiores empresas de serviço de nuvem do planeta (a empresa é cheia de superlativos), capaz de oferecer uma experiência de MMORPG cativante onde outras tantas falharam? Novamente, veio a ironia: os servidores ficaram lotados no lançamento, com filas de espera que chegaram a centenas de jogadores por servidor. A maior empresa de nuvem do planeta blá blá blá não estava conseguindo dar conta do volume de usuários conectados em seus servidores.

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Por um lado, tornou-se evidente que New World estava vindo para se tornar o sucesso do ano. A demanda era maior do que fora imaginada, mesmo nos maiores sonhos de seus acionistas ou nos piores pesadelos de seus engenheiros de rede (os melhores do planeta, sim, mais um superlativo).

Do outro lado, a Amazon Games mostrou outra vez um amadorismo incompreensível em sua reação à superlotação de servidores. A estratégia adotada foi trancar servidores para a criação de novos personagens, deslocando jogadores que chegavam para novos servidores. Se os seus amigos todos entraram no primeiro dia ou durante as betas e foram para o mesmo servidor, você não poderia mais se encontrar com eles se criasse seu personagem no segundo dia, por exemplo. Migrações de servidores só serão liberadas em alguns meses, até lá… jogue com estranhos, faça novos amigos. Se seus amigos são de outra região, a migração não irá acontecer.

Peregrinos do Colonialismo

Perdão pelo longo preâmbulo, mas tudo isso foi necessário para deixar claro que a Amazon Games estava com a faca e o queijo na mão para produzir um MMORPG memorável, o eventual WoW-killer perseguido pela indústria desde tempos imemoriais.

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Elementos para New World sobrepujar seus antecessores não faltam. O universo criado por eles convida ao mistério. Temos aqui uma terra mágica que foge de comparações com WarCraft, Warhammer ou Tolkien, ao nos apresentar uma espécie de História alternativa, em que a época das Grandes Navegações se mistura com pitadas de fantasia. Ou, "o que aconteceria se Cristovão Colombo tivesse descoberto o Continente de Geralt de Rivia?". Criaturas místicas, abominações, ruínas enigmáticas, um ou outro encantamento, convivem lado a lado com uma leva de colonizadores carregando mosquetes em busca de fama e fortuna.

Inserido em seu próprio lore, a "imortalidade" dos jogadores faz parte do contexto. Embora seja natural em 99% dos jogos (excluindo aqueles que contam com a famigerada permadeath), a ressurreição em New World é explicada como um fenômeno próprio de Aeternum, onde seus náufragos colonos terão que passar uma eternidade sem conhecer a libertação da morte, até definharem e se tornarem uma das várias criaturas zumbificadas que assolam o continente perdido.

Tudo isso se encontra em um cenário deslumbrante, com paisagens de cair o queixo em sua beleza gráfica. Esferas gigantes jazem pelo chão, com propósito desconhecido. Estátuas de seres de quatro braços se erguem no que sobrou das cidades dos primeiros habitantes de Aeternum. Em outras regiões, a própria Mãe Terra se funde com seus filhos, gerando animais híbridos de flora e fauna. Uma torre majestosa partida por uma explosão mística está congelada no tempo, sem nunca desmoronar.

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A esse assalto visual se junta um trabalho de som praticamente impecável. Não apenas a trilha sonora evocativa embala aventuras, mas até o barulho de uma árvore caindo na floresta corresponde exatamente ao que você espera que seja. São muitos os pequenos detalhes de áudio que capturam sua imersão.

Então, nessa terra que oscila entre o paradisíaco e o letal, a Amazon Games nos convida a ser quem quisermos ser. Não há classes definidas ou papéis claros. Com a opção de evoluir seu personagem como desejar, o jogador pode perfeitamente ser um "tanque" com um machado gigante que também seja capaz de efetuar curas em si mesmo e seus aliados, por exemplo. Você pode usar a arma que preferir, o peso da armadura que desejar, evoluir suas perícias da forma que achar conveniente. O chamariz desse novo mundo é esse recomeço libertador.

New World, Old Problems

Infelizmente, encerramos por aqui os pontos positivos de New World. O que deveria ser novo rapidamente se mostra bastante atrasado. A impressão que se tem é que houve um retrocesso no desenvolvimento de MMORPGs, como se o título da Amazon Games fosse uma cápsula do tempo de quinze anos atrás que ignora toda e qualquer evolução no gênero, trazida por jogos como Guild Wars 2 ou os anos mais recentes de Final Fantasy XIV.

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Depois de algumas horas de jogo é inevitável repetir os mesmos dois tipos de missão nos mesmos lugares: mate X inimigos do tipo tal e colete X itens (que estão bem próximos daqueles mesmos inimigos, então, sim, você vai ter que matá-los). A tarefa não seria tão irritante se você não estivesse revisitando as mesmas regiões para facções diferentes ou pessoas diferentes que pedem as mesmas coisas. Quando finalmente parece que se esgota o ciclo daquele lugar, passamos a repetir a mesma sequência em outro lugar muito similar ao anterior, seja a milésima fazenda tomada por "zumbis", seja a milésima ruína tomada por esqueletos.

New World apresenta um dos maiores mapas contínuos (sem carregamento) de um MMORPG, mas parece não saber o que fazer com ele. Os jogadores começam em regiões aleatórias, então, para equilibrar as aventuras, cada região é quase uma cópia direta da outra, com as mesmas estruturas de missões e localidades.

Porém, há um terrível agravante em New World: por ter uma área gigante, o jogador terá que percorrer distâncias enormes até chegar em seus objetivos. Não há qualquer tipo de montaria e o sistema de teleporte disponível é limitado a determinados pontos e dispendioso. Prepare-se para bater perna, muita perna.

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Eu me vi aceitando um volume absurdo de missões paralelas para ver ser era possível otimizar o tempo: a região com maior concentração de marcadores era o meu destino, tentando ainda pegar outras missões no caminho e combinar com um teleporte gratuito para a estalagem no final da "corrida". Eu me sentia como um entregador da Amazon, preparando rotas de entrega, odiando Jeff Bezos e só querendo meu pagamento no final do dia.

O resultado de tanto esforço repetitivo é um combate murcho, que não só está muito longe da complexidade tática de um Chivalry 2 ou mesmo Conan Exiles, como também apresenta uma quantidade tão ínfima de animações que faria muitos MMORPG se envergonharem. Até mesmo o vetusto DC Universe Online trazia lutas mais vigorosas.

A tal liberdade alardeada inicialmente se torna frágil quando contemplamos a pequena variedade de armas. Se você espera ser o senhor dos arcos, lamento informar que só existe um tipo de arma. Se você se apaixonar por armas de fogo, só existe uma arma de fogo disponível. E aqueles que escolherem o caminho da magia receberão apenas três tipos de armas e feitiços: cura, fogo e gelo.

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Em contrapartida, para que tanta arma, se os inimigos são quase sempre os mesmos? Mortos-vivos, piratas, criaturas selvagens, fantasmas e esqueletos e esgota-se 90% da população hostil de Aeternum. Não apenas há pouca variedade como todos são pouco ou nada criativos em sua execução visual. Nesse ponto, Guild Wars 2 ou mesmo o ancestral World of Warcraft varre o chão com New World.

Outro arcaísmo de New World é a necessidade de se aguardar que determinados mini-chefes ressuscitem no mapa para completar missões. Você e outros na mesma situação aguardam longos minutos pelo ressurgimento da criatura, sem fazer nada, com medo de perder aquela tênue janela em que o inimigo permanecerá vivo antes de ser linchado. Dependendo da quantidade de dano que você inflige, talvez seu abate nem seja registrado e você terá que esperar vários minutos outra vez para uma nova chance, enquanto mais gente chega com a mesma missão…

Bem-vindo à Economia do Bico

O que New World traz de novo para o cenário? Ele é o primeiro MMORPG da chamada gig economy ou "economia do bico" e é impossível não associar seu sistema econômico com o mastodonte corporativo que é a Amazon. Cada missão executada rende um pagamento irrisório e você não se sente, em momento algum, como um salvador ou um herói, mas apenas uma outra engrenagem em uma máquina de moer tarefas.

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De moeda em moeda, você está juntando para comprar sua própria casa, pouco mais que um cafofo, com algumas esparsas vantagens na jogabilidade geral, mas que lhe é oferecida logo no começo, como uma cenoura na frente do burro. A sua primeira casa (com desconto) irá custar 7500 moedas de ouro. Cada missão rende, por média, 10 moedinhas. Cada missão que exige um bocado de tempo, vale dizer, porque fica ali, onde o vento faz a curva, onde Judas perdeu as botas. Uma vez comprada essa casa, o jogador terá ainda que pagar uma espécie de IPTU dela, uma quantia equivalente a até 20% do valor dela, paga a cada cinco dias.

Então, temos um jogo onde você rala o dia inteiro em tarefas repetitivas para juntar moedas para comprar uma casa e depois rala feito um louco para sustentar o sonho da casa própria. As definições de emprego foram atualizadas com sucesso.

Entende-se que aqui toda a economia é gerida pelos próprios jogadores. Não há NPCs comprando ou vendendo itens, sejam recursos ou equipamentos. Você sempre estará comprando um produto de um jogador na pouco amigável tela do mercado. Você sempre estará vendendo o loot que você não deseja para outro jogador, na mesma tela. Então, há outras formas de se fazer dinheiro? Sim e não.

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Uma vez que armas e peças de armadura dropam continuamente de inimigos abatidos ou missões completadas, seu preço despencou no mercado. Uma vez que anunciar no mercado tem um custo(!) e esse anúncio provavelmente irá se perder em meio a dezenas de anúncios parecidos, é mais econômico, muitas vezes, reciclar uma arma encantada que você sabe que é poderosa, mas você tem uma ligeiramente melhor. Então, ao invés de vender para alguém, você desmonta a arma em troca de literalmente centavos.

O que os jogadores descobriram é que vender recursos, matéria prima básica de fabricação, é mais lucrativo. New World é um mundo em que o cacau vale mais do que o chocolate belga que se produz com ele, onde ferro tem um valor de mercado maior do que ouro ou diamante. Ainda assim, se você está pensando em se tornar o novo Jeff Bezos de Aeternum, é importante salientar que o lucro obtido dificilmente será alto e exigirá um bocado de trabalho árduo.

Quem lucra com esse sistema? O mais forte. Cada região é controlada por uma facção, uma espécie de milícia digital que recebe o nome de Guilda em outros MMORPG. Essa facção assume o controle de um assentamento na base da força, aumenta o valor dos impostos, pega a soma dessas taxas exorbitantes e investe em fortificações para evitar que uma facção rival os expulse de lá. Enquanto isso, nós, o povo, os donos da mão de obra, nos arrastamos de um lado para o outro tentando encontrar algum sentido nessa vida.

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New World não esconde ser um jogo com forte foco no PvP (ainda que seu sistema de combate seja vergonhoso). Porém, os louros da conquista estão trancados para jogadores de nível mais alto. Até chegar lá, você terá mesmo que se sustentar de bicos, na esperança de algum dia fazer parte da elite dominante ou pelo menos rachar o crânio de outro jogador pela glória de sua facção. É impossível não pensar nos assalariados dos armazéns da Amazon, que sequer podem se sindicalizar para reivindicar o direito de ir ao banheiro fazer pipi.

New World é uma imensa Serra Pelada, aquele garimpo catastrófico que aconteceu décadas atrás. Uma promissora terra de oportunidades, usurpada por meia dúzia de sortudos truculentos, em que a maioria luta por migalhas, mas continua atraindo levas e levas de novos sonhadores. Inegavelmente, o jogo é um fenômeno: a prova viva de que mesmo um MMORPG repleto de novos e velhos problemas é capaz de atrair multidões para pagar por promessas edulcoradas.

Ouvindo: London After Midnight - Psycho Magnet

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