Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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3 de setembro de 2010

Ao Vencedor, as Batatas!

Quando eu era mais jovem, em minha época de colégio, participei de um torneio de vôlei entre escolas, empurrado pelas aulas de Educação Física. Graças ao meu compulsório auxílio, o time alcançou o segundo lugar e todos nós ganhamos reluzentes medalhas de prata. Sem minha ajuda, o time poderia ter levado ouro... É interessante notar que na vida real tudo o que acontece é sempre no modo "carreira". Não existem partidas isoladas de contexto, disputas aleatórias ou equipes pré-selecionadas. Tudo sempre vem acompanhado de uma história: um óculos quebrado durante o treino, a namorada de um amigo que aparece e os outros caras ficam olhando, um juiz que pode ter favorecido o adversário ou não, uma equipe selecionada na marra tendo que levar um proto-nerd à tiracolo. E esta é a graça da vida. Tudo é "carreira". Cada etapa, detalhe ou obstáculo faz parte da diversão, da jornada.

Vôlei é um jogo e isso não se discute. Ele tem regras claras, universais, seguidas em todas as partes do mundo. Pontos, punições, vencedores e perdedores. Todo o resto, a "carreira", somos nós que fazemos. E, ao final de tudo, vem a recompensa. No meu caso, uma medalha de prata, minha única condecoração esportiva em uma lata cheia de medalhas por notas altas. Mas a recompensa não é só isto, é o percurso.

Ninguém ganhou um prêmio extra por ter acertado uma bola nos meus óculos. Ninguém ganhou um prêmio extra por ter xingado o juiz. Ninguém ganhou um brasão, fitinha, tatuagem ou o que quer que seja por ter mandado a bola mais alto que o normal ou ter completado um número X de levantamentos ou ter mantido a bola no ar por mais tempo. Ninguém destravou uma bola especial ou jogou com o uniforme de Isaac Clarke. Essas bobagens não existem no mundo dos esportes, no mundo dos jogos de carne, osso e empenho. E, por não existirem, ninguém se preocupou com elas.

Essas gracinhas virtuais inventadas pelas produtoras de jogos eletrônicos chamam-se de Achievements, realizações. E são a mais artificial, estúpida e vulgar forma de prolongar um jogo.

Gordon Não Tem Tempo

Half-Life 2 Meu primeiro contato com esta aberração tecnológica foi em Half-Life 2: Episode Two. Inconcebível que um jogo que tenha um dos mais retumbantes momentos emocionais da história dos jogos eletrônicos, também tenha sido uma das primeiras investidas da Valve nesta moda de Achievements. Gordon Freeman está em uma desesperadora corrida para salvar Alyx Vance das garras da morte e perde seu tempo destruindo larvas de Ant Lions? Apenas a destruição de 200(?) destas inofensivas criaturas pode desbloquear um dos Achievements do jogo. E a imersão que se exploda.

Completei a aventura sem dar a menor atenção para estes detalhes. Ocasionalmente, um ícone aparecia informando que eu tinha "conquistado" um troféu. Troféu? Pensei que a recompensa fosse a conclusão da história e a jornada que ela me proporcionava, mas percebi que queriam me empurrar "prêmios" por fazer meu serviço ou por coisas absurdas que fugiam da lógica do enredo. A Combine está prestes a abrir um novo portal dimensional e querem que eu perca meu tempo com anões de jardim...

No meu entender, Achievements, troféus ou qualquer que seja o nome que eles recebam, são ferramentas artificiais, fora de contexto, que me lembram constantemente que eu estou disputando um jogo, uma brincadeira virtual onde tudo é permitido. Atmosfera, trilha sonora, NPCs cativantes, enredo inteligente, tudo cede espaço para uma mensagem de alerta. É como atender um telefonema no meio de um filme. Pior: é atender um celular dentro do cinema! Se nós temos a pretensão de transformar jogos em arte, temos que deixar de lado estes truques competitivos ilógicos.

O Meu é Maior que o Seu!

Headshot Uma parcela da população de jogadores aprecia os Achievements. Uma parcela significativa ou a indústria não os estaria criando e embutindo em quase todos os jogos. E isso faz parte do problema. Esta mentalidade vem sido trazida de décadas de fliperamas, onde os garotos se amontoavam em torno das máquinas para decidir quem era o "Melhor". Em uma época em que os roteiros dos jogos, quando existiam, cabiam em uma frase, a recompensa de um jogo era medida por números no visor, pelo número de espectadores e pela quantidade de tempo em que era possível jogar com uma única ficha.

Os tempos mudaram e continuamos querendo saber quem é o "Melhor". O mundo online se tornou o grande fliperama e as partidas multiplayer são as novas arenas romanas onde astros de nomes estranhos competem por seus quinze frags de fama. Jogos são medidos não pela qualidade de seus roteiros, mas pela capacidade de atrair jogadores para infinitas partidas de matança sem compromisso. Não existe modo "carreira" ou ele é apenas um ensaio para aquilo que realmente importa: conquistar headshots.

Neste sentido, não há como fugir da palavra "jogo". Tudo é "jogo": competição, pontos, times, partidas. E os Achievements são uma outra moeda que pode ser acumulada para provar aos amigos que você é o "Melhor", uma unidade de medida arbitrária e que não pode ser falsificada. Quanto mais pontos, melhor. Não importa os jogos, não importa o jogador. Números não mentem! Caçadores de Achievements correm atrás de jogos de pouca expressão ou baixo preço pela glória simulada de destravar pontos virtuais. Cutscenes criadas com esmero por dezenas de profissionais são aceleradas sem piedade. Trilhas executadas por orquestras são trocadas por MP3s de sucessos do momento. E os botões são apertados. E a Arte suspira e vai dar uma volta em outro lugar.

Houve um momento nesta indústria, em algum ponto entre os anos 90 e os anos 00 em que a indústria dos jogos poderia ter superado o significado da própria palavra "jogo" e transcendido em direção a algo mais próximo da narrativa multimídia interativa. A equipe da Quantic Dream persegue este objetivo ainda. Heavy Rain, por exemplo, não deveria ter Achievements. Do embate entre a pressão da Sony e a decisão criativa do estúdio, chegou-se a um meio-termo: o jogo teria Troféus, mas o jogador só saberia de suas conquistas entre um capítulo e outro. Nada de mensagens no meio da história para informar algo tão banal. Para quem acredita que "jogos" podem ser mais do que um apertar preciso de botões movidos pelo reflexo, esta notícia é um sinal de que nem tudo está perdido.

Heavy Rain

Lembranças, sensação de dever cumprido. Não há outra recompensa. Seja no Vôlei ou em Half-Life 2.

Ouvindo: Kmfdm - Move on

3 comentários:

Bruno disse...

Logo quando tive contato com os achievements, os achei bacaninhas. Não fediam nem cheiravam, completamente dispensáveis, mas uma adição que, talvez, me faria voltar a explorar o jogo caso a história não fosse suficiente p/ isso.

Mas agora é isso aí mesmo. [spoiler ME 2] Não importa mais a chocante descoberta que os aliens que raptam colônias humanas inteiras sem deixar rastros são de uma espécie considerada extinta a pelo menos 50 mil anos, que se tornaram escravos de A.I.'s mais antigas ainda, responsáveis por inúmeras extinções em massa pela galáxia. O que importa é conseguir todos os upgrades de armas, fazer speed-runs e obter o máximo de dinheiro e materiais possíveis. [/spoiler de ME 2].

Guilherme disse...

Sou leitor há um bom tempo do seu blog, mas raramente participo das discussões... na verdade, nunca participei. :P

Atualmente tenho um PS3 e minha reflexão sobre tal assunto (trophies e achievements) é a seguinte: eu não dou a mínima para trophies no meu primeiro gameplay.

Após "zerar", sem consultar FAQs e trophy guides, aí eu parto para a conquista dos eventuais trofeus que faltaram. Na minha opinião, é um recurso interessante da nova geração. Aumenta bastante o fator replay.

Inclusive Heavy Rain foi uma das melhores experiências que tive nessa geração. Jogo fantástico, inovador e só fui começar a "caçar" os trofeus restantes após zerar pela primeira vez. Foi interessante, afinal Heavy Rain tem múltiplos endings. :-)

Mas é isso aí. Parabéns pelo blog.

Abraços.

C. Aquino disse...

Seja bem-vindo à discussão, Guilherme. Você, Bruno e alguns outros são raras exceções entre os jogadores, apreciando uma boa história e não se preocupando muito em coletar brindes virtuais.

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Blog criado e mantido por C. Aquino

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