Retina Desgastada
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20 de abril de 2024

Outcast - A New Ending

Ulukai e Lehaz

A reta final de Outcast - A New Beginning é tão divisiva que merece um capítulo separado em relação a minha análise original. Obviamente, haverá spoilers.

Foram 44 horas nessa jornada, uma quantidade que deve ser considerada absurda em relação às 22 horas que levei para completar Outcast - Second Contact. O motivo para eu ter levado o dobro do tempo não foi sua história, que possivelmente tem a mesma duração do jogo anterior. O motivo foi minha quase obsessão por suas deliciosas mecânicas. Eu, que sempre fui um crítico do excesso de marcações no mapa de franquias como Far Cry ou Assassin's Creed, me vi aqui caçando atividades loucamente, repetitivamente, apenas para esticar um pouco mais o prazer de saltar, voar e até mesmo dar combate a meus inimigos.

Entretanto, tudo tem seu limite. Finalmente saciado, desejava ver a conclusão da história, que, até então, vinha sendo oferecida a conta-gotas. Para meu desespero, percebi que são necessários determinados gatilhos para se avançar em cada vila, gatilhos esses que dependem de tempo entre um e outro (o que me obrigava a retornar para as atividades secundárias) ou que dependem de conversações muito específicas com personagens chaves. A desenvolvedora Appeal segura a mão do jogador e lhe mostra o que fazer em 90% do tempo, de forma quase didática. Nos outros 10%, somos obrigados a adivinhar o que é necessário fazer para progredir, como nos bons e velhos tempos do Outcast original.

E então veio a reviravolta...

Sankra!

Reunificadas todas as aldeias de Adelpha, neutralizados todos os postos avançados dos invasores humanos, desbloqueados todos os poderes que serão utilizados na guerra iminente, o jogo dá uma forte guinada de tonalidade. Ao longo de quarenta horas, brinquei de salvador branco, resolvendo a maioria dos problemas na base de tiro, porrada, bomba (e enxames de vespas gigantes) e estava tudo bem. Exceto que, sem que o jogo desse pistas explícitas nesse sentido, eu estava conduzindo aquela cultura para um caminho sem volta de violência e fanatismo religioso.

O retorno de Ulukai semeia Sankra, o caos entre os elementos. Sem que me fosse dada essa percepção, eu estava fomentando o surgimento de uma milícia fortemente armada que estava prestes a assumir o comando de Adelpha para expulsar o invasor com sacrifícios. Essa mesma milícia transformou amigos em inimigos, passou a determinar costumes, perseguir opositores e estabelecer um culto religioso. Eu havia recriado, em um universo completamente ficcional, o movimento Taliban.

O que antes havia sido uma aventura branda, lotada de sarcasmo e violência contra robôs e animais irracionais, tomou uma dimensão preocupante que prometia derramamento de sangue e uma guerra sem perspectiva de vitória. Um povo antes inocente e pacífico parecia condenado a seguir caminhos obscuros. Cutter Slade tinha deixado Adelpha em um estado pior e aparentemente irreversível. Eu havia trazido Sankra para o planeta. Movido pela melhor das intenções, eu havia cometido o mesmo pecado de Fae Rhan eras atrás.

A mudança surge de forma brusca. O que Frank Herbert levou centenas e centenas de páginas para explicar nos livros de Duna (e muitos não entenderam até hoje), aqui nos é apresentado em questão de minutos. O ovo da serpente chocou.

Curiosamente, confrontado com esse dilema, o que me foi oferecido para solucioná-lo? Novos confrontos. Mais tiroteio para eventualmente tentar negociar um acordo de paz. O que começou divertido, havia se tornado repetitivo e agora era amargo. Mais faíscas para o barril de pólvora, sangue para o deus do sangue, ossos para o trono de ossos.

Evidentemente, a solução nos escapa. O jogo chega a colocar Cutter Slade, o mercenário, o senhor da guerra, no papel de um embaixador da boa vontade, com direito a discurso edificante. Tarde demais. Evidentemente, mais vidas são ceifadas. Pessoas que se tornaram importantes para Slade são consumidas diante de seus olhos. Como sair desse dilema que a própria guinada de tom provocou?

Deus Ex Machina

A Wikipédia nos explica que o recurso do deus ex machina é "uma solução inesperada/mirabolante para terminar uma obra ficcional". É um clichê tão velho quanto a própria narrativa, utilizada no teatro grego, quando o narrador não sabia o que fazer para concluir uma trama e uma divindade aparecia para interferir. O final de Outcast - A New Beginning é o puro suco do "deus ex machina".

Os Yods, as divindades básicas de Adelpha, interferem diretamente no conflito que poderia destruir duas civilizações. Esse é o tamanho do fracasso de Cutter Slade. É questionável por que os Yods escolheram um militar para resolver um problema que exige equilíbrio. Ainda que tenha bom coração e um forte senso de dever, Slade é limitado em sua percepção. O desastre por ele provocado sintetiza sua inabilidade de solucionar o que quer que seja sem transformar tudo em uma guerra. Então por que ele foi escolhido desde o primeiro jogo? E por que os Yods não conferiram a ele desde o começo o poder que ele empunha no final?

Outcast - A New Beginning chega a repetir o mesmo erro da batalha derradeira do primeiro jogo. Passamos dezenas de horas evoluindo habilidades e armas que nos são tiradas no último confronto. Estratégias que adotei durante toda minha jornada foram jogadas fora. Impossibilitado de vencer o último chefe, apelei para reduzir a dificuldade para Fácil.

No epílogo, tudo se resolve de forma extremamente rápida e milagrosa. Os Yods se manifestaram através de suas novas profetisas, está tudo bem agora. Slade foi uma bucha de canhão que mais atrapalhou do que ajudou no grande esquema das coisas. Terra e Adelpha atingiram um estado de união que sequer faz sentido. Se vamos falar seriamente de geopolítica, a solução da conclusão chega a ser utópica, para não dizer infantil.

Sobem os créditos, com cenas magníficas de como Adelpha se encontra agora. Outcast - A New Beginning tem muitas falhas em sua reta final. Entretanto, não me arrependo da jornada, não me arrependo das 44 horas, assim como Slade, eu dei o máximo de mim, movido pelo amor por esse planeta, seu povo e suas tradições. Que seja feita a vontade dos Yods.

Ouvindo: Draconian - The Solitude

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Outcast - A New Beginning