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8 de agosto de 2022

Jogando: Backroom Beyond

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(publicado originalmente no Gamerview)

O fenômeno cultural das Backrooms tem data de início em 2019. Foram necessários quase três anos para ele fermentar no subconsciente coletivo da Humanidade e emergir na forma de uma safra aparentemente infinita de jogos amadores. Backroom Beyond se junta à lista adicionando mecânicas de puzzles baseadas em física e explorando com um pouco mais de cuidado técnico essa estranha realidade paralela.

O jogo da brasileira White Vortex é o casamento perfeito de uma expertise nascida do serviço de criar espaços virtuais para terceiros (pegando carona no Metaverso), um pendor para o horror e a febre dos jogos de Backrooms. O resultado final é um título que desafia a paciência e os nervos do jogador, amparado pela atmosfera perturbadora mas prejudicado por uma caixa maldita que será xingada de todos os nomes possíveis até o final da jornada.

Era Uma Vez Um Lugar...

... que surgiu no 4Chan, o maior produtor de chorume da cultura ocidental, de onde ocasionalmente emergem histórias de terror realmente inovadoras. Para quem não está familiarizado com o conceito de Backrooms, estamos falando de dimensões paralelas que são estruturadas em torno de um infinito de corredores e salas vazias, com tom amarelado e luz fluorescente, um pesadelo corporativo do qual a fuga é impossível.

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Embora o primeiro sinal da lenda urbana tenha surgido em 2019, ela ganhou força no imaginário no mesmo momento em que profissionais retornam para o ambiente de escritório depois de dois anos de Home Office por causa da pandemia. Backroom é o filho mais famoso de outro conceito, o dos espaços liminares, espaços arquitetônicos removidos de sua função original e assombrados por um forte sentimento de "algo não está certo".

Silent Hill fazia isso e, a sua maneira, Stanley Parable também, para ficarmos em apenas dois exemplos. Imagine-se aprisionado em um conjunto de baias de escritório em um serão de final de semana, incapaz de encontrar a saída ou sentido em seu aprisionamento. e é fácil entender como as Backrooms são reflexo de nosso tempo.

Backroom Beyond, portanto, está inserido em um contexto coletivo. Jogos que abusam do conceito em busca de um susto rápido e um faturamento ainda mais rápido podem ser encontrados aos montes. Uma busca ligeira no Steam revela quase vinte títulos. A fórmula é simples: áreas similares, às vezes até geradas de forma procedural, formando um labirinto e uma força sinistra ou monstro perseguindo o jogador.

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O grande mérito da White Vortex com Backroom Beyond é colocar um pouco mais de dedicação e talento em seu projeto, usando e abusando dos recursos da poderosa Unreal Engine 5. Essa não é uma brincadeira de menos de 60 minutos, um protótipo ou um trabalho amador, mas uma aventura longa (e extenuante), com 40 níveis que me custaram mais de 5 horas para atravessar e alguns neurônios que não voltam mais.

O Tormento de Sísifo em Backroom Beyond

Em Backroom Beyond, você é um personagem sem nome ou rosto que se encontra aprisionado nos bastidores da realidade. Para seguir em frente, é preciso atravessar uma única porta existente no ambiente. Para abrir essa porta, é necessário empurrar uma caixa vermelha até um grande botão vermelho no chão. Pense no Companion Cube de Portal, mas sem a Portal Gun, e repita essa ideia dezenas e dezenas de vezes.

A mecânica é simplista, ainda que bem explorada em várias salas. Entretanto, essa mecânica irá se desdobrar em uma jogabilidade irritante que funcionará como uma penitência. Se a proposta do jogo é punir meu personagem por erros cometidos no passado (e várias falas indicam que esse é o contexto), então aceitei minha sina. A caixa infernal precisa ser arrastada por longas distâncias, muitas vezes através de obstáculos e esse é o verdadeiro loop de ação que você irá executar: arrastar essa caixa de novo e de novo, como um Sísifo virtual, sem entender exatamente os motivos.

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A tarefa seria imensamente mais fácil se fosse possível pegar a caixa e carregá-la, entretanto isso está fora de cogitação. A caixa vermelha precisa ser arrastada, utilizando uma física incompreensível. O menor toque no ângulo errado tira a caixa de sua rota original ou a projeta em alta velocidade para um precipício. Uma vez perdida a caixa, ela não ressurge, obrigando o jogador a reiniciar o nível.

A melhor forma de ter algum controle sobre a caixa é agachando, fixando o olhar no chão e empurrando ela o mais lentamente possível. Então, passei uma parte significativa de Backroom Beyond com um campo de visão extremamente limitado e entediante, a uma velocidade de tartaruga. Existe uma pá no jogo que serve basicamente para remover a caixa de cantinhos ou arrastá-la bem rápido, mas a física da pá é ainda mais caótica, muitas vezes girando no ar como se tivesse vida própria ou desaparecendo dentro da terra.

Em Backroom Beyond existem caixas auxiliares (e a caixa verde pode ser pega com as mãos!), mas o foco está mesmo na insuportável caixa vermelha. Além disso, todas as caixas parecem cheias de ar e se afastam de você em qualquer esbarrão. Considerando que o jogo tem visão em primeira pessoa e você não sabe os limites do seu corpo, é muito comum esbarras nas caixas. Em determinada fase, você precisa fazer uma pilha delas para alcançar um ponto alto... dá quase para escorrer uma lágrima.

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Combine a instabilidade da física com pontos de plataforma que surgem a partir do nível 25. É necessária uma certa precisão em saltos sucessivos. Um erro e você precisa recomeçar o nível inteiro, sem checkpoints de qualquer tipo. A força do ódio me garantiu a perseverança para chegar até o final.

Acender das Luzes

Se não foi masoquismo, o que me fez concluir Backroom Beyond? A convicção de que a jogabilidade fazia parte da proposta. A história, ainda que rasa, intriga, justamente por não entregar respostas. Quem sou eu? Por que estou passando por tudo isso? Quem esteve nessas Backrooms antes de mim? Quem é o Guia que surge ocasionalmente, diz enigmas e vai embora? O que são os olhos gigantes que me contemplam em determinadas áreas? Eu apenas sabia e aceitava que estava ali justamente para sofrer.

Backroom Beyond entrega então uma atmosfera onírica de castigo. O próprio conceito do qual a White Vortex se apropria já é provocador em sua natureza, mas a desenvolvedora nacional apimenta a angústia com algumas paisagens inéditas e o ocasional grotesco inexplicado. Porém, ao contrário de tantos outros clones, não há um inimigo central ou uma ameaça impondo um sentido de urgência. O jogador pode atravessar cada mapa em seu próprio ritmo, de acordo com sua própria paciência. Sai o medo, entra o sentimento de inquietude.

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A trilha sonora complementa a experiência, sem roubar a cena. A White Vortex conseguiu adicionar a música "Pérolas Irregulares", da banda independente Terceiro Mundo, na conclusão do jogo. É a única recompensa válida que recebemos, em qualquer um dos dois (simplórios) finais. Ainda assim, o clipe não é executado e aqui só ouvi a música em tela preta. Uma última tortura do jogo ou um último bug de despedida?

Backroom Beyond triunfa ao almejar ir além dos caça-níqueis de Backrooms que existem no mercado, mas fracassará em tentar atingir o grande público. Talvez eu tenha enxergado demais em sua proposta, talvez eu esteja em processo de negação sobre meu tempo perdido, talvez seja apenas um jogo de arrastar caixa que se aproveita de uma lenda urbana da moda, mas o fato é que sua jogabilidade não irá estimular muitas pessoas.

Ouvindo: Darkseed - Sleep sleep sweetheart

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