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27 de julho de 2022

Jogando: Hazel Sky

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(publicado originalmente no Gamerview)

O quanto de nossas vidas é determinado por escolhas que fazemos e o quanto de nossas vidas é imposto a nós por pressão da família e da sociedade? Seguir o caminho do pensamento racional e cartesiano ou se entregar de corpo e alma aos mistérios da vida? Hazel Sky é um título brasileiro que navega por essas águas em uma jornada questionadora.

O jogo da desenvolvedora nacional Coffee Addict Studio irá exigir raciocínio lógico de seus jogadores para se chegar ao final, mas exigirá também o completo abandono das explicações fáceis e o abraçar da Lua para ser compreendido em sua plenitude. O que resta em seus momentos finais é a certeza de se ter jogado um título ímpar e charmoso.

Um Homem Escolhe, Um Escravo Obedece

A abertura de Hazel Sky não causa uma primeira boa impressão. De imediato, somos apresentados a um dos grandes defeitos dessa aventura: a dublagem. Há um certo amadorismo no elenco de vozes brasileiras, que nos remete aos primórdios da dublagem, quando os próprios desenvolvedores davam o melhor de si e assumiam os microfones, com muito empenho, mas pouco jeito.

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Em contrapartida, esse elenco de vozes hesitantes funciona bem em um contexto de personagens que não estão muito certos sobre suas motivações ou o resultado de suas ações, uma gama de personagens no desabrochar da juventude, o que talvez não tivesse o mesmo impacto se profissionais da dublagem conduzissem os diálogos. As raras vozes adultas em Hazel Sky não passam essa mesma impressão.

Porém, o começo não convence. A narração desnecessária tenta ser expositiva, mas não consegue sintetizar a complexidade do mundo que irá se descortinar depois. Ao mesmo tempo, a agência demora a ser entregue nas mãos dos jogadores. Felizmente, tão logo a aventura engrena, Hazel Sky consegue mostrar o encanto de uma travessia que não se define entre ser mágica ou racional, que flerta com elementos dos dois lados e, consequentemente, fala fundo à dualidade humana.

Aqui, somos apresentados a uma utopia chamada Gideon: uma cidade flutuante construída por antepassados para abrigar uma sociedade perfeita controlada pelos Engenheiros. Nesse cenário que se inspira no steampunk (mas sem nunca abraçar sua estética completamente), existe um teste importantíssimo, um rito de passagem para os jovens que desejam seguir carreira na elite social. Cada jovem precisa ser enviado para ilhas isoladas de tudo e de todos para resolver puzzles, mostrar seu valor e suas habilidades técnicas e retornar como mais um mantenedor de Gideon.

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Como toda utopia que se preza, ela não é perfeita pra todos. Na verdade, Gideon oprime as classes trabalhadoras e os artistas e uma revolução está fermentando em suas engrenagens. Deverá Shane, nosso jovem protagonista, completar seus testes, realizar a vontade de seu pai e retornar para Gideon ou ele deve abraçar a liberdade finalmente exposta no mundo aqui fora?

A Dama Marrom Observa em Hazel Sky

O enigma do jogo exige fôlego para esmiuçar os detalhes presentes na narrativa ambiental e montar o maior de seus quebra-cabeças: o sentido de seu mundo. É preciso reunir a narração com transmissões de rádio, contos e textos embutidos em livros, anotações deixadas por outros que passaram por essas ilhas antes de Shane, assim como cenas em flashback em que controlamos outros personagens.

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Há elementos inexplicados abaixo da superfície desse mundo aparentemente lógico, o que nos remete, em seus melhores e mais estranhos momentos, a Twin Peaks ou o realismo fantástico latino-americano.

Na primeira camada de jogabilidade, Shane seguirá o roteiro que lhe foi dado. Hazel Sky literalmente entrega os planos de cada teste nas mãos do jogador, que precisa reunir as partes que estão faltando e completar as tarefas que estão listadas. Em termos de puzzles, o jogo não surpreende nem chega a ser um desafio. Ainda assim, sair da estrada guarda a segunda camada: recolher as pistas que vão construindo uma imagem muito maior e artística de sua jornada.

Parte dessa mágica é obtida através da trilha sonora deliciosa que se infiltra pelos rádios espalhados pelas ilhas. Música, ou "mósica", é proibido em Gideon. Entretanto, Shane está descobrindo essa ilegalidade, ele mesmo sendo um aprendiz de cancioneiro que irá encontrar e executar diversas faixas espalhadas pelos mapas. O jogador é convidado a tocar essas músicas com uma mecânica de violão que dá os primeiros acordes dessas canções.

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Ao longo de Hazel Sky também vamos reunindo itens colecionáveis que são visualmente adicionados à mochila do protagonista. São memorabílias dessas paisagens onde o Sol nunca dorme, em muitos casos os últimos resquícios de outros sonhadores que se desviaram como você. Esse aspecto pode instigar um tipo específico de jogador.

O Sol é Para Todos

Apesar do jogo ser brasileiro, a impressão que fica é que ele foi concebido em inglês e traduzido para nosso idioma por pessoas que não tinham o domínio pleno. O erro de tradução mais gritante é aquele que converte "sheet" ("chapa") em "tecido". Levei um bom tempo procurando tecido no jogo até entender que devia procurar chapas (de metal) para completar a primeira máquina. Não é um erro pontual, porque em outros momentos "sheet" recebe o mesmo tratamento, assim como outras palavras que parecem deslocadas em nosso vocabulário.

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Essas falhas arranham um pouco a obra que é Hazel Sky. Os gráficos charmosos sofrem em alguns momentos com as animações que não são tão fluidas quanto precisariam ser. Porém, em outros momentos, principalmente quando temos maquinário se movendo ou veículos, o jogo impressiona e entrega o deslumbre que esperamos.

A Coffee Addict Studio tem um grande fracasso anterior em seu currículo: o pessimamente avaliado Blade & Bones. O fiasco não parece tê-los desanimado, mas empurrado na direção de ambições maiores, um jogo que funciona como uma experiência no limiar do belo e do intrigante, que transcende explicações formais, que promete puzzles e entrega perguntas.

Ouvindo: Mazedude and Jack Wall - Exiled Samples

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