Retina Desgastada
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18 de outubro de 2012

Por Que Half-Life?

Half-Life 2

"Sei que é fã de HL e gostaria de saber na visão de fã, porque idolatram tanto esse jogo que nunca conquistou minha simpatia". Este questionamento do leitor NasFer (publicado aqui) me fez pensar de por que sou fã das aventuras de Gordon Freeman. Na verdade, nem o primeiro, nem o segundo Half-Life, nem suas expansões ou episódios fazem parte de minha lista de favoritos. Mas ainda aguardo ansioso pelo mítico Half-Life 3. Então... o que acontece?

É preciso entender que não considero nenhum dos jogos o ponto culminante em FPS ou em narrativa ou em gráficos ou em qualquer outro quesito onde jogos costumam ser pesados e comparados. Mas há um certo poder de inovação inerente na forma com que a Valve criou esses títulos, que não é encontrado nem mesmo nos outros jogos de seu currículo.

Half-Life Quando o primeiro jogo foi lançado, em 1998, os FPS em sua vasta maioria constituíam de um ou dois braços segurando uma arma e corredores repletos de inimigos para serem detonados em frações de segundos. Esse bem-sucedido molde foi estabelecido por Doom e parecia ser o paradigma permanente do gênero. Até a Valve criar um jogo com uma longa sequência de abertura, sem armas, sem inimigos, mostrando o cenário e um universo de NPCs passeando por ali. Pela primeira vez, uma desenvolvedora transformava o ambiente 3D de um FPS em um universo a se emergir e não em uma arena de combate. Lembro até hoje do espanto que tive ao apertar todos os botões possíveis no trem interno de Black Mesa, tentando fazer aparecer uma arma, uma faca que fosse. Com estes poucos minutos introdutórios, a Valve estabelecia novas regras e já mostrava de antemão o que você teria que atravessar de volta para escapar com vida da instalação condenada.

Quando o programador de inteligência artificial Steve Bond resolveu brincar com os scripts do personagem Barney (até então um vilão menor no jogo) e transformá-lo em alguém capaz de seguir o protagonista sem ser hostil, ele não tinha ideia do que estava prestes a deflagrar. De seus experimentos, surgiu a iniciativa de transformar o guarda de uniforme azul em um aliado, algo raramente visto em FPS até então. Mais: de sua base de comportamento surgiram os cientistas, nem aliados, nem inimigos, mas vítimas presas no mesmo problema. De uma hora para a outra, Black Mesa ganhava verossimilhança. Se hoje pode parecer risível chamar as ações destes personagens de realistas, na época foram revolucionárias. Algo até então só visto em RPGs passou a ser incorporado aos jogos de tiro:  personagens que não eram alvo.

Ao mesmo tempo em que mostrava ser possível ter aliados e NPCs, Half-Life também nos apresentava oponentes que reagiam e pensavam. Foi uma das mais perfeitas ilusões de inteligência artificial apresentadas até hoje. Compare com este vídeo, de um jogo lançado dez anos depois.

Por muito pouco, o pioneirismo de Doom poderia ter seguido pelo caminho da narrativa. Tom Hall, da id software, criou uma "bíblia" com todas as informações daquele universo e criou uma história complexa sobre a base marciana invadida por demônios. John Carmack, chefe de Hall, declarou: "história num jogo é tão importante quanto à história num filme pornô". E jogou tudo fora.  Doom se tornou o festival de tiros frenético que todos amam, Tom Hall pediu as contas e foi para a Ion Storm criar Anachronox. A Valve veio e colocou um enredo em um FPS, com sucesso. Não através de cutscenes, que interrompem o ritmo e cansam o jogador quando são abusados, mas através de diálogos, dicas sutis, eventos programados. Esta fina arte foi aprimorada na continuação, ainda que seu protagonista não diga uma palavra. Sem usar vídeos, sem usar um narrador, sem usar letreiros descritivos, a Valve consegue a proeza de nos mostrar um mundo dominado pelo Combine e sugerir a terrível Guerra das Sete Horas.

Jornal

Nascida na cena mod, a Valve incentivou a comunidade a continuar florescendo. Assimilou vários grupos para sua folha de pagamento e nunca disse "não" para nenhuma adaptação de Half-Life. Como resultado, pode-se comprar o primeiro jogo e usufruir dele por meses a fio, sem pagar um centavo a mais. O que já existia antes com Quake e Doom, explodiu com a engine da Valve até se transformar no fenômeno mundial conhecido como Counter-Strike.

Na hora de produzir a continuação, um frio na espinha deve tê-los atingido. Half-Life era xodó da empresa e um marco no gênero. Como fazer um raio atingir o mesmo ponto duas vezes? Com uma história melhor, um universo ainda mais estruturado, puzzles de física nunca superados e uma engine leve que poderia rodar em quase qualquer máquina de sua época. Houve atrasos, houve vazamentos, houve a expectativa de que Doom 3 poderia ofuscar seu sucesso. Mas Half-Life 2 chegou para sacudir o mercado outra vez.

Talvez por insegurança, talvez por um excessivo desejo de inovar, Half-Life 2 se tornou um jogo híbrido. A jogabilidade se alterna a cada capítulo. Temos FPS tradicional, de correr e atirar, mas também temos longas sequências pilotando um barco ou um carro, temos que evitar os Antlions, temos que controlar os Antlions, temos a arrepiante Ravenholm (quase um survival horror), temos a fase com  aliados, temos a Gravity Gun, temos a Super Gravity Gun... Assim como o primeiro, tem suas falhas, mas é um título que colocou um monte de elementos novos na mesa e perguntou: "Ficou legal? Acha que o gênero pode incorporar isso no futuro?".

Como bem ilustrado por Shamus Young, Half-Life 2 teria sido um título muito diferente se tivesse sido produzido por outra empresa. Ele não se passa em uma Nova York dominada, Alyx Vance não é uma piriguete em perigo, a trilha sonora não é de metal pesado (nada contra, mas...), Gordon Freeman não tem a atitude de um supersoldado (embora seja visto pela Resistência como um Salvador). Há cuidado na construção de seu cenário, seus personagens coadjuvantes são verossímeis e carismáticos, a trilha é sutilmente orquestrada. Um claro sinal da diferença sobre Doom 3 foi que enquanto John Carmack e seu time se concentravam em oferecer os melhores efeitos de iluminação para seu título, ao custo, inclusive, de sacrificar performance, a Gabe Newell e seus contadores de história se focaram em capturar expressões faciais.

Personagens

A Valve errou ao tentar seguir o modelo de episódios. Subestimou o tempo necessário para dar prosseguimento à história. Esta falha chega a soar como ingenuidade aos olhos atuais, quando DLCs já vem escondidos no disco ou saem algumas semanas depois do jogo principal. Eles prometeram tempos de desenvolvimento mais curtos, mas não conseguiram cumprir. Estamos todos suspensos depois do final apoteótico do Half-Life 2: Episode Two, não apenas uma das melhores e mais empolgantes batalhas finais de que participei, como também um dos mais impactantes epílogos que vi.

Em seus escritórios secretos, Newell e sua távola redonda preparam um novo relâmpago, tentando atingir o mesmo ponto mais uma vez. Mas o cenário dos FPS mudou. Bioshock aconteceu, Modern Warfare aconteceu. Team Fortress 2 aconteceu. Tenho esperanças somente de que a Valve entenda sua posição no mercado: não a obrigação de fazer o melhor FPS que existe, mas a obrigação de criar o novo, de ir aonde ninguém pensou em ir, de dar a cara para bater, de ousar, de pensar, de inventar e até errar.

Half-Life 3

Gordon Freeman voltará.

Ouvindo: In The Nursery - Ethics of Belief

19 comentários:

Fagner P. disse...

Muito bom texto, muito parecido com meu modo de pensar, todas as postagens de Half Life eu faço questão de comentar. hehe

Correção: Foi guerra de 7 Horas, e não 6, como apresentado no seu texto.

Augusto Lacerda Dalpiaz disse...

Esqueceu de citar a chegada do maravilhoso Spec ops

Marcus Gonzallez disse...

Bioshock... Tentei algumas vezes e falhei em gostar desse jogo em todas elas. Tenho o um e o dois que peguei em promoções na Steam, mas não gostei deles. Queria ter gostado, falam tão bem, mas... Spec Ops: The Line realmente é bem interessante. Gostei dele, mas pra mim, Dishonored está sendo o melhor de 2012 até o momento. Cara, como eu curto Stealth... Mas sei que Hitman vai esmagar o que sinto por Dishonored até agora. Quanto a série Half Life, finalmente parei de sofrer pelo final de HL2:ep2 e estou tocando a vida... Se um dia chegar HL3 estarei esperando-o com amor... Sem paixão.

Marcos A. S. Almeida disse...

Aquino, entendo perfeitamente o que você sente por Half-Life 2, sinto o mesmo por Resident Evil 4. Só espero que você não se frustre com a sequência como eu me frustrei com o RE5...

Jimmy Fischer disse...

Bioshock 1 e 2 ( o 1 principalmente) são excelentes FPS com uma história e ambientação fantásticas.

O HL1 foi revolucionário para a época, só acho que ele começa legal mas se perde nas partes finais(minha opinião).

Agora me desculpe Aquino, HL2 e o Ep2(ep1 uma mer...)devem figurar na lista de favoritos de qualquer jogador da atualidade.Po, HL2 é um jogo que tu zera e nem percebe, o jogo é muito fantástico, fora esse lance de percorrer muito tempo de barco e outros veículos.

A VAlve é a única produtora que boto fé.Só lançam jogos fantásticos e não exploram o consumidor.

Não canso de dizer que comprei L4D2 faz quase 3 anos a até hoje recebo DLCs sem gastar nenhum tostão a mais com isso, algo que não é raro na atualidade, é simplesmente uma excessão.

Eu espero ansioso pelo HL3, mas espero o quanto for necessário.HL3 não pode ser um jogo qualquer, tem que sacudir o gênero como o bioshock fez a pouco tempo como você mesmo lembrou.

Breno disse...

"Pela primeira vez, uma desenvolvedora transformava o ambiente 3D de um FPS em um universo a se emergir e não em uma arena de combate."

Rpgs em FPP pisaram nesse solo primeiro, com titulos como Ultima Underworld, Elder Scrolls Arena,Daggerfall e Sistem Schock. E se hj um fps pode ser considerado um rpg por que não esses titulos acima. Eu também me lembro de npcs que não eram necessarios matar,mesmo em shotters como Quake 2 e Blood(embora os NPCs se comportem como patetas)

Uma das heranças malditas que half life popularizou são as cutscenes de engine. essas sim são impossíveis de pular, mesmo que vc tenha passeado de trem umas mil vezes, se vc não tiver um save se ferrou, vai ter que assistir de novo. Esse papo de inovação não cola muito pra mim, pra mim half life apenas popularizou algumas mecanicas e designs, assim como qualquer jogo dessa geração que se diz inovar ou introduzir novas mecanicas( Gears of War em oposição a Killswitch, God of War em oposição a shemmue,etc)

"Bioshock aconteceu"
apenas um clone pretencioso de half life : http://www.youtube.com/watch?v=JPMiqDqkWn8

"não a obrigação de fazer o melhor FPS que existe, mas a obrigação de criar o novo, de ir aonde ninguém pensou em ir, de dar a cara para bater, de ousar, de pensar, de inventar e até errar."

Na verdade a valve não tem obrigação de fazer nada a não ser que eles queiram. E com certeza eles não tem esse pedigree todo, apenas são superestimados, coisa comum nessa industria sem senso critico.

"John Carmack, chefe de Hall, declarou: "história num jogo é tão importante quanto à história num filme pornô".

E 20 anos depois eu ainda encontro jogos com historias piores que filmes pornos. Na verdade a história de Doom contida num readme.txt ainda bota muito jogo pretencioso no chinelo. Devo concordar com João nessa. Histórias em jogos tem que ser menos intrusivas.

"puzzles de física nunca superados"
Não sou especialista no genero,mas acho que ao menos Portal superou,por ser mais focado logico.

Marcos disse...

Pra mim, a maior inovação do HL foi pegar a engine velha do Q2 e fazer milagre. Gosto muito dessa série e espero a anos um desfecho para o HL2

Breno disse...

A engine the Quake 2 não era velha em 98, e qual é o milagre que vc fala?

Marcos disse...

acho um milagre por eles pegarem uma engine e terem que refaze-la em tão pouco tempo, não da pra associar Q2 com Hl a menos que tenham acompanhado todo o processo

Marcus Gonzallez disse...

"John Carmack, chefe de Hall, declarou: "história num jogo é tão importante quanto à história num filme pornô".

Concordo em partes... Certos jogos me pegam na história, como Deus Ex: Human Revolution, o próprio Half Life, Red Dead Redemption e podem curtir com a minha cara, a trilogia Modern Warfare entre alguns outros jogos, mas outros jogos a história não me atrai e mesmo assim os acho excelentes. Dishonored é um jogo que estou curtindo horrores e além do básico, nem me interessa a história dele... Uma encheção de linguiça só... O mais importante de fato é a mecânica, a jogabilidade, o resto, se for interessante, ótimo, mas não é o mais importante. Minha opinião.

LocoRoco disse...

Eu acho que a série HL tem um jeito de contar história diferente, nem falo da trama em si, que essa eu em conheço e também tem pouca importância. Ele consegue narrar pela jogabilidade, e, a partir desta, passar algo, criar algo. É claro que isso não acontece em todos os momentos, mas estes momentos são significativos e interessantes.
Porém tenho que confessar que eu desisti do HL2 no meio do caminho. Eu simplesmente não consigo suportar aquela parte do carro. Primeiro tu pega um veículo anfíbio, e anda, anda, anda, e parece que isso nunca vai acabar. Quando realmente termina e tu pensa que nunca mais vai entrar em um veículo de novo, tu acha um outro. Eu juro que eu tentei terminar esta parte, mas não consegui desisti no meio do caminho, minha paciência foi no limite e desinstalei o jogo.
Respeito muito a série, mesmo tendo essa horrível experiência que ainda carrego um certo trauma.

Breno disse...

"Ele consegue narrar pela jogabilidade"

A história do jogo é o que vc joga. Qualquer jogo faz isso. A narrativa que vc fala é a experiencia do jogador.

Eu posso contar uma história baseado nas minhas experiencias jogando GTA thief, etc

Jimmy Fischer disse...

O Breno deve ser do PSTU... kkkk

Breno disse...

Se tem uma coisa que me incomoda é o excesso de hiperboles e condecorações injustas que um jogo pode oferecer. Half life é um bom FPS, nada mais nada menos. Half life 2 é bom também embora pise um pouco na bola com o excesso de cutscenes e NPCs imortais(tanto NPC puxando saco-vide Alix- que Half life inaugurou o genero ego shotter-embora nisso eu tenha que admitir que eles são um dos melhores-)

Marcos A. S. Almeida disse...

Eu levanto aqui uma questão abordando a frase que o Aquino citou e o Marcus Gonzallez ressaltou que é a do John Carmack dizendo "história num jogo é tão importante quanto à história num filme pornô".Primeiro que no contexto da época fazia sentido por conta das limitações técnicas em se contar essa história dentro do jogo;segundo era até pra defender o seu produto que talvez até por conceito não tinha incorporado uma história - e sua frase corrobora com isso.Outro aspecto que quero levantar é sobre a língua.Para se entender a história era - e anida é - preciso entender o inglês , que se hoje já não é mais tão difícil por conta de abnegados grupos de tradução, tradutores automáticos de texto ou até o difundido ensino da língua, na época acho que a dificuldade era muito maior.Mas nem por isso jogos que tinham histórias complexas deixaram de fazer sucesso, por conta de outras qualidades - mais relevantes - que eles tinham.Portanto, a frase de John Carmack continua á fazer sentido, um jogo não precisa NECESSÁRIAMENTE ter uma história, outros atributos são muito mais importantes e fundamentais pra cativar pessoas.E pessoalmente acredito firmemente nisso, por mais retrógrada e antiquada que possa parecer a frase do cara.

LocoRoco disse...

@Breno
Acredito que a jogabilidade é algo além que apenas uma mecânica. Que tu pode pela jogabilidade narrar, passar algo para o jogador, sentimentos, reflexões, etc, coisas que dizem ser exclusivas da escrita ou da história. Concordo contigo, essa narrativa como uma experiência do jogador, porém visualizada e planejada pelo programador, com vista em tentar fazer o jogador experimentar algo.

C. Aquino disse...

Sobre a frase do Carmack, acho apenas que ele foi infeliz ao generalizar e não enxergar outras possibilidades. É praticamente certo que Doom não seria o sucesso que foi se não fosse acelerado, sem barreiras de linguagem, com uma relação ação-recompensa quase imediata. Mas o mundo dos jogos é vasto, engloba de Tetris aos delírios cinematográficos de um Metal Gear ou Final Fantasy. A comparação mais clara seria mesmo com o cinema: a existência do cinema pornô não invalida a existência de outros tipos de filmes; são "necessidades" diferentes sendo atendidas! Há espaço para um mata-mata como Killing Floor, há espaço para algo mais demorado como um Amnesia.

Jimmy Fischer disse...

Exato Aquino.
Street Fighter 4 por exemplo tem história, meio idiota e totalmente descartável, mas tem...se algum fanático detalhista se importa com ela, legal, mas a grande maioria doas fãs não está nem aí pra ela(pelo menos é o que eu vejo).

Shadow Geisel disse...

o jogo narra com a jogabilidade. acho que acabaram de descrever o que sentíamos com Doom na época de seu lançamento.
e acho que o que importa mesmo é o resultado final de um jogo. pouco importa se Bioshock é um clone pretensioso de Half Life, pois nem sempre um jogo original consegue ser bom e vice-versa. é só olhar para o exemplo de god of War e Shenmue, que foi dado: qual dos dois é mais original e qual dos dois é um jogo inesquecível? pois é... se Shenmue foi esquecido, provavelmente é pq sofria de problemas que o impedia de brilhar em quesitos básicos em um jogo, ao passo que GOW copia mas melhora quase tudo em que toca.

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