Retina Desgastada
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16 de abril de 2023

Jogando: Dredge

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(publicado originalmente no Gamerview)

Lovecraft foi um gênio perturbado que desprezava o gênero humano como um todo (e grupos específicos de humanos com mais vigor, infelizmente). Sua mente febril traduziu o medo real do desconhecido, forças que ninguém seria capaz de conceber, cuja mera fagulha de percepção nos arrastaria para a loucura. Dredge pega esses elementos e usa em um jogo de pesca.

A mistura completamente inusitada à princípio acaba funcionando magicamente bem, um casamento profano entre a mente racional, que desenvolve estratégias para maximizar sua pesca e seu equipamento, e o que não pode ser explicado, aquilo que rasteja no fundo dos oceanos inexplorados. A originalidade dessa combinação é o grande trunfo da Black Salt Games.

O Que as Ondas Trouxeram Para a Praia…

Em Dredge, assumimos o controle de um pescador sem sorte. Ele busca novos ares nas costas da cidade de Medula Maior, sob a luz segura de seu farol. Entretanto, não há luz suficiente no universo para desvelar suas noites sombrias e um rochedo se coloca no caminho da embarcação. É o começo de um pesadelo que não terá mais fim. Doravante, seu destino está atado a essas águas e seus enigmas.

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O início da história remete a clássicos da literatura, como o protagonista com lapsos de memória, que desperta em uma comunidade que não conhece, habitada por estranhos, mas convidativos moradores. Em cada frase de boas-vindas, há algo escondido. Em cada conversa casual, há coisas não ditas sobre a relação entre os cidadãos de Medula Maior e o oceano. Um oceano que insiste em parir peixes incompreensíveis, um oceano cuja noite conduz a mais forte das mentes às raias da insanidade.

Toda a atmosfera de Dredge gruda no jogador como cracas no casco de um velho navio. Ela faz parte da trilha sonora sutil, mas incômoda. Ela faz parte das estranhas neblinas que se abatem de tempos em tempos, dos relâmpagos que atingem o mar, das cores sobrenaturais que emanam de peixeiros específicos, das aparições que surgem no limiar da razão.

O jogador descuidado irá experimentar eventos complexos, maldizer sua sorte e voltar para o porto com algo anormal vicejando em seu porão ou com peixes furtados por forças macabras.

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Explorar esse arquipélago é essencial para desvendar o que está acontecendo. Há muito mais território no horizonte. São cinco regiões para serem esmiuçadas, cada uma com suas próprias particularidades, sua fauna, seus segredos e, principalmente, seus horrores.

Tudo isso é conduzido por uma missão central que claramente está condenada a terminar de uma forma desagradável, mas que é o fio condutor da narrativa. Cabe ao jogador também descobrir seu contexto, em mensagens flutuantes, nas entrelinhas de conversas, em encontros fortuitos com os loucos.

Dredge Também Pode Ser um Barquinho a Deslizar no Macio Azul do Mar

Ironicamente, a Black Salt Games criou um título que também pode ser relaxante. É fácil perder a noção do tempo em Dredge, embriagado pelo chamado do mar e por suas mecânicas gostosas. Pescar costuma ser uma daquelas atividades obrigatórias em muitos jogos (principalmente RPGs e MMOs), porém nem sempre bem executada. Aqui, pescar é prazeroso.

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Temos a empolgação de se descobrir um espécime novo, assim como uma “Pokédex” ilustrada com informações da criatura marinha, com descrição, habitat e outros detalhes. Há peixes especiais para serem desbloqueados, as chamadas anomalias gestadas por esse oceano diabólico. Tudo isso ativa gatilhos no jogador colecionista, que poderá perder um bom tempo buscando completar o seu registro ou indo atrás dos peixes raríssimos que um NPC pede.

E o medo? Sabendo pescar nos horários certos, com o equipamento certo, é possível evitar boa parte da tensão que o jogo oferece. Se a ousadia estiver lá em cima, também é possível desbravar a noite profunda, assumir riscos e ser testemunha daquilo que os olhos humanos não deveriam ver.

Muito do nível de horror que Dredge traz é administrável pelo jogador. “Hoje, eu vou tirar o dia para pesquisar destroços”, “hoje eu vou fazer dinheiro pescando na segurança”, “hoje eu vou encarar a Morte de frente”, são opções que você se verá fazendo a cada sessão.

Ainda assim, não há segurança absoluta em momento algum. Determinadas tarefas obrigatórias para se finalizar a trama exigem riscos calculados. Por mais que seu barco esteja com todas as melhorias possíveis, há coisas lá fora que transformariam sua embarcação em um grão de areia na vastidão cósmica.

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Fhtagn!

Por mais fácil que seja dominar essas mecânicas e amenizar o impacto da narrativa, ninguém escapa do medo. Dredge não tenta ser um survival horror, com recursos escassos, horrores permanentemente no seu encalço ou telas frequentes de morte. Porém, ele enrosca seus tentáculos no fundo da mente e não irá largar até o último minuto. Ainda assim, um pouco mais de desafio talvez acentuasse a sensação de desespero buscada pela trama.

Para um mapa tão grande, há poucas missões paralelas. Se gastei 14 horas nesses mares, não foi porque o jogo me pediu, mas porque eu aproveitei bem a falta de uma ampulheta. Dredge não exige pressa, então joguei tudo no meu ritmo. Ouso dizer que fiz fortuna, que completei, sem precisar, a árvore de evoluções da Doca Flutuante. Mesmo diante do aviso da reta final do jogo, eu não queria me despedir daquelas águas.

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Por outro lado, um jogador menos plácido poderia completar o arco principal possivelmente em um terço desse tempo. Um pouco mais de leva e traz entre as ilhas, eventos randômicos no oceano profundo, teriam incrementado a experiência de uma forma geral.

É preciso estar atento porque Dredge oferece (até onde sei) dois finais diferentes. Há uma reviravolta bem explícita em um deles e mais sutil no outro. Nenhum dos finais é agradável. Porém, eu assinei embaixo quando comecei. Com Lovecraft, a conclusão não poderia ser outra a não ser a desgraça.

Ouvindo: Triumph Studios - Highmen

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