Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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1 de fevereiro de 2009

Combatendo a Ignorância

Muitos dos visitantes deste blog chegam aqui vindos do Google, após pesquisarem o "perigo dos jogos eletrônicos". Se existe mesmo este perigo imaginário, nada mais natural que as pessoas se preocupem. Meu post "Jogos Eletrônicos: Os Vilões da Vez?" faz um apanhado histórico sobre diversas outras manifestações culturais que foram injustamente acusadas de malefício no passado.
Infelizmente, não sou o dono da verdade absoluta. Nem pretendo ser. Minha pretensão é apenas levantar alguns tópicos para que o leitor tenha alguns dados a mais para conseguir formular sua própria opinião. Aliás, ter opinião é uma atitude muito saudável, recomendada a todos.
Respeitar a opinião alheia também é uma atitude muito saudável, ainda que bem mais difícil de colocar em prática. Principalmente, quando aquela é baseada em meias-verdades, fatos distorcidos ou mesmo mentiras deslavadas.

Não vou discutir aqui opiniões. Não vou entrar no mérito religioso de um tema que nem deveria ser religioso. Não vou entrar no campo político ou no juízo de valores de cada um.
 
O que eu vou fazer é procurar desmentir algumas afirmações levianas com fatos concretos e deixar que as teorias que se utilizaram delas caiam sozinhas (ou não). A ignorância não pode ser desculpa ou mola motriz de qualquer julgamento. Como fio condutor, vou utilizar algumas páginas encontradas no Google na pesquisa sobre o "perigo dos jogos eletrônicos".

Caso 1

Em uma página do Testemunhas de Jeová (http://www.watchtower.org/t/20021222/article_02.htm) vem a "informação" de que "um estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que quase 80% dos videogames preferidos pelos jovens contêm violência.". Na verdade, um estudo recente apontou especificamente que a violência não é um fator determinante no apelo que um jogo exerce sobre seus jogadores.

carmageddon Ao comentar sobre o jogo Carmageddon, o autor menciona que "o jogador terá atropelado e matado umas 33.000 pessoas ao chegar à última fase". Na verdade, localizar e matar todos os milhares de pedestres existentes nas pistas é a forma mais difícil e tediosa de vencer o jogo. Um jogador sensato terminaria Carmageddon simplesmente completando todos os circuitos ou destruindo os demais oponentes. Atropelar os pedestres, ao contrário do que muitos imaginam, não é obrigatório em Carmageddon. Tivesse o autor acusado o jogo de mau-gosto, seria uma opinião menos exagerada e mais próxima da realidade.

Finalmente, ao citar a história do jovem "Thomas", de 23 anos, que teria se livrado do "vício" dos jogos eletrônicos, comete-se um erro derivado do desconhecimento técnico do assunto:
“Uma noite, eu estava deitado. Já era tarde, mas eu senti que não podia continuar vivendo daquele jeito. Levantei, liguei o computador, selecionei todos os jogos e apertei a tecla de deletar (sic). Pronto! Em um segundo, todos os jogos tinham desaparecido.  (...) Assim que percebo que o hábito de jogar está fugindo do controle, simplesmente aperto a tecla de deletar novamente.”
Teria sido melhor para a integridade do sistema operacional do jovem "Thomas" se ele tivesse desinstalado os jogos ao invés de simplesmente deletar suas pastas. O uso do termo errado demonstra falta de conhecimento do depoente, do autor ou do tradutor.

Caso 2

Se o primeiro caso, talvez eu tenha me prendido a pequenas inconsistências, a desinformação se agrava na página da revista Kerygma (http://www.kerygma.unasp-ec.edu.br/opiniao07.asp), do Curso de Teologia da Unasp.

O autor, Diego Barreto, inicia seu artigo estabelecendo um forte contexto sobre a indústria dos jogos eletrônicos e sua evolução. Ele menciona a troca de influências narrativas entre cinema e os jogos e resume com exatidão o estado atual dos jogos maduros:
Dos mais simples como o futebol aos temas mais complexos como relações internacionais, os games vêm acompanhando o desenvolvimento dos filmes, assim como dos jogadores. Os mesmos jogadores que se utilizavam do videogame em seu período de consolidação e iniciação, em meados de 1980, são adultos hoje. A indústria não quer “decepcioná-los”, por isso produz maciçamente jogos com temática adulta.
Entretanto, da metade do texto em diante, há uma forte guinada no teor do artigo (a partir do subtítulo "O Maior Perigo"). O que se segue é uma sucessão de incorreções, influenciada por uma visão maniqueísta imposta por seus próprios dogmas:
Quase todos os estilos de jogos, até mesmo os de naves espaciais, possuem títulos (jogos em si) com “tipos” demoníacos. Pode-se tirar dessa contagem alguns games esportivos. Quanto mais enredo, maiores são as possibilidades. E os “tipos” são aldaciosamente (sic) exibidos. Exemplos desse fator em alguns títulos famosos são: Devil May Cry, Resident Evil, Silent Hill, Hell, DOOM, Quake, Phantasmagoria, Possesion e outros.
(…) Em 2005, dois jogos abordando o tema da possessão demoníaca foram lançados, em que o jogador se passa por um ser possuído por um espírito do mal. Um desses jogos, Shadow of the Colossus, foi nomeado o melhor jogo do ano e está entre os três mais vendidos. Músicas, cenários, personagens, poderes, objetivos e etc. Um mundo de coisas que fazem alusão ao inimigo de Deus.
Não vou debater religião.

Entretanto:
  • Na série Devil May Cry, o personagem principal é Dante, um investigador paranormal especializado em combater demônios com chumbo grosso. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.
  • Na série Resident Evil, os oponentes são zumbis ou criaturas mutantes geradas pela ciência de uma corporação mal-intencionada. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.
  • Na série Silent Hill, o jogador é apresentado a uma cidade corrompida por forças sobrenaturais e seus personagens precisam enfrentar seus próprios medos e pecados para escapar com vida e sãos. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.
  • Em Hell, o jogador é apresentado a um futuro imaginário onde o governo encontrou o caminho do Inferno e usa as profundezas para encarcerar criminosos. No papel de Gideon Eshanti e Rachel Braque, dois ex-agentes do governo, o jogador deve resolver uma conspiração. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.
  • Na série Doom, a ciência (mais uma vez) abriu uma passagem para o Inferno em uma estação espacial em Marte. No papel de um soldado, o jogador deve sobreviver a este pesadelo. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador. Ao final, inclusive, o jogador vence o Diabo em pessoa na base da bala!
  • No primeiro jogo Quake, uma legião de criaturas de outra dimensão planeja uma invasão à Terra. Cabe ao jogador, no papel de um soldado, viajar através de estranhos mundos e derrotar o invasor. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.
  • Em Phantasmagoria, o jogador conduz Adrienne Delaney, que comprou uma casa assombrada pelo espírito de um homem que vendeu sua alma. Para que Adrienne se livre da perturbação, e preciso desvendar esse mistério e destruir a entidade. Não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.
  • Finalizando...Possesion é um jogo que não existe, de acordo com o Mobygames, o maior banco de dados de informações sobre jogos do mundo.
Shadow of Colossus Ainda que o autor cite dois jogos de 2005 envolvendo "possessão demoníaca", ele só fala de Shadow of Colossus. Que não apresenta "possessão" alguma! No jogo, uma grande fábula, o jogador conduz Wander, um jovem herói que deve derrotar 16 criaturas de proporções colossais para poder salvar a vida de sua amiga. E, também, não qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador.

Muitos destes jogos apresentam, sim, elementos "demoníacos", seres, objetos e cenários que podem e devem ser interpretados como oriundos do Mal, do "inimigo de Deus". Eu concordo. Mas em todos os jogos citados, sem exceção, esse mesmo mal é um obstáculo para o jogador, um inimigo a ser derrotado, uma força a ser destruída e JAMAIS um exemplo a ser seguido.

Caso 3

O mais impressionante exemplo de inverdades pode ser encontrado não em um artigo oficial de um segmento religioso específico ou na revista eletrônica de uma faculdade, mas em uma singela página hospedada no Geocities (http://br.geocities.com/apocalypticahp/games.htm). Eu nem deveria dar crédito para eles, mas, uma vez que o endereço aparece bem colocado entre os resultados do Google...

O "texto" começa citando o infame caso do assassino Mateus Meira, que entrou atirando em um sessão de cinema em São Paulo, em 1999, matando três pessoas. Seu caso merece um post próprio, mas podemos resumir. Seus advogados, na época, assim como o autor do texto, tentaram classificar o atirador como doente mental, influenciado pelo jogo Duke Nukem. A Justiça Brasileira não aceitou a argumentação e Mateus Meira foi considerado responsável consciente por seus atos, sendo condenado a 120 anos de prisão.

Em seguida, ele aborda o tema das "mensagens subliminares" de ocultismo, supostamente presentes em 90% dos jogos. Não há mais informações sobre o assunto ou uma fonte para tal estatística. Dispensa comentários. É consenso entre os pesquisadores, entretanto, que "(…) até hoje, a persuasão subliminar não conseguiu ser comprovada, ainda que alguns pesquisadores independentes aleguem terem experimentos que de fato comprovariam a existência da persuasão. Infelizmente até hoje ainda não existe nenhum trabalho publicado em periódicos científicos que confirme essa afirmação, desde a época em que o conceito de mensagem subliminar foi definido" (conforme a Wikipedia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Mensagens_subliminares).

Prosseguindo, o autor apresenta um breve resumo sobre os jogos julgados mais alarmantes:
  • Tanto a descrição de Blood quanto do já citado Carmageddon estão corretas, ainda que pintadas com cores um pouco fortes demais. Se o primeiro jogo é um grande galhofa (para adultos), onde não há qualquer apologia às forças do Mal, que precisam ser derrotadas pelo jogador, o segundo, como já disse, é pouco mais do que uma peça de mau-gosto.
  • Ao descrever Doom 2, além de citar constantemente a Nintendo(!), que não possui qualquer relação com o jogo, o autor omite que as forças do inferno presentes na história são combatidas pelo jogador. Essa omissão importante também é cometida ao mencionar o jogo Diablo.
  • Dope Wars, o bizarro simulador de tráfico de drogas, não é um título comercial. Ele não pode ser encontrado para vender em lugar algum, sendo basicamente um trabalho semi-amador distribuído na Internet. Logo, não pode ser considerado um exemplo do que a indústria de jogos eletrônicos de fato produz.
  • Duke Nukem 3D, apesar de ter vendido milhões de unidades em todo mundo, é erroneamente associado com o crime de Mateus Meira. O consumo de entorpecentes por parte do atirador ou a posse ilegal de uma submetralhadora importada não costumam ser mencionados com tanta ênfase por aqueles que insistem que ele foi "influenciado" pelo jogo.
  • Hell é citado mais uma vez, acompanhado do estranho caso de Keith Flaig, 14 anos, que teria cometido crimes brutais e se suicidado após uma partida do jogo. Pesquisando na Internet, não consegui encontrar informação alguma sobre o ocorrido (?!). Todos os sites nacionais parecem repetir o mesmo texto e a única referência em inglês é claramente uma tradução publicada em um site religioso. O autor menciona que a notícia saiu na revista Veja, em 24 de Janeiro de 1996. Infelizmente, os arquivos online da revista começam a partir de 1997. Se alguém tiver esse exemplar ou tiver oportunidade de visitar uma biblioteca para confirmar essa história, por favor escreva nos comentários! A matéria foi confirmada como autêntica.
  • E a lista prossegue...

Caso 4

De uma outra página do Testemunhas de Jeová (http://www.watchtower.org/t/200801b/article_01.htm), vem, finalmente, uma das posturas mais sensatas. O autor utiliza um argumento com o qual eu concordo (ainda que de uma forma diferente):
É claro que são seus pais que decidem se você pode ou não se divertir com jogos eletrônicos. (Colossenses 3:20) Se eles o deixam jogá-los, você conseguirá encontrar um jogo que seja divertido e ao mesmo tempo moralmente aceitável.
Não se trata aqui de um endosso das crenças do autor. Não vou discutir religião, repito. Ao final, inclusive, a conclusão pode ser aplicada a qualquer leitor, de qualquer religião:
Não adianta condenar a indústria dos jogos como um todo ou afirmar categoricamente que eles são pura perda de tempo. Lembre-se: nem todos os jogos são prejudiciais. Mas eles podem viciar e consumir muito tempo. Por isso, analise quanto tempo seu filho gasta jogando. Além disso, avalie o tipo de jogos que parece atrair seu filho.
Isso prova que é possível defender uma postura religiosa em relação ao tema (concorde ou não) sem apelar para interpretações equivocadas e falsas informações.

Não se pode afirmar positivamente que todos ou mesmo alguns jogos causem benefícios ou malefícios. Pode ser que eles melhorem a visão, pode ser que não exista conexão alguma entre violência nas escolas e jogos, pode ser que eles influenciem o consumo de drogas e alterações de comportamento e pode ser que a causa da delinqüência juvenil seja outra. Pesquisas existem aos montes, de ambos os lados, e talvez ninguém seja mesmo dono da verdade absoluta.

Ouvindo: Iain Ballamy - Spanish Web

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