Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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4 de setembro de 2022

Xalablung, O Esquecido

(baseado em uma ideia do meu filho)

Houve um choque violento, talvez uma extensão tardia da freada brusca. Ele se esquecera de colocar o cinto de segurança, muito provavelmente porque já estava bêbado demais sequer para lembrar o próprio nome. O impacto contra o painel do veículo deveria ter acontecido muitos segundos atrás, mas não veio. Apenas a sensação excessivamente longa de estar sendo arremessado bem longe, um túnel de luz e agora ele estava ali.

Era uma balbúrdia.

Quem estivesse bancando aquilo tudo estava gastando uma nota preta em gelo seco. Era impossível ver o chão, coberto por aquela névoa branquinha, que se estendia até onde a vista alcançava. Era muito gelo seco mesmo. Debaixo da fumaça inodora, ele podia sentir que o piso era taco. Possivelmente taco de baixa qualidade. Ele entendia dessas coisas porque vender imóveis era sua vida.

Então, ele se tocou que não iria mais vender imóvel nenhum. Acabou. Taco, sinteco, tábua corrida, azulejo, mármore ou ardósia. Não fazia diferença. Aquilo tudo ali não era um centro de convenções (por mais que estivesse abarrotado de gente). Aquilo ali era o pós-vida.

Uma multidão estava transitando pelo lugar com a mesma cara de perplexidade que ele. Faltava uma orientação. O negócio era meio desorganizado. Na distância, ele podia ver algumas filas gigantescas. Uma fila terminava em uma espécie de escadaria, com um banner gigante em cima escrito "Jeová". A fila do lado era igualmente grande e terminava em outra escadaria, com outro banner gigante, desta vez escrito "Krishna". Tinha mais algumas filas, com esquemas parecidos mas ele não conseguiu ler o que estava escrito. Sentiu-se decepcionado que sua miopia o acompanhou para o outro lado.

Foi então que recebeu o primeiro panfletinho. Uma moça sorridente que tinha idade para ser sua filha estendeu um papel, quase empurrando em suas mãos. Apesar da simpatia, ela nem olhou nos seus olhos e se dirigiu para a pessoa do lado, entregando outro papel e seguindo em frente para o próximo. Ele deu uma olhada no panfleto: "aceite Odin no seu coração". Achou estranho. Mas o velho barbudo estampado no panfleto tinha uma aparência bonachona, apesar do tapa-olho.

Ele foi andando sem rumo e recebendo mais e mais panfletos. Havia uma certa hostilidade entre os entregadores. Eles se acotovelavam e até se empurravam para entregar a ele mais e mais pedaços de papel. "Junte-se a Zeus". "Só Kali salva". "Nefertite te espera". Já estava formando um bolinho na sua mão. Também já estava se formando uma cacofonia nos seus ouvidos, porque os militantes não estavam mais apenas distribuindo os papéis, mas também berrando em alto e bom som pacotes de vantagens, benesses e até ameaças. Um seguidor de Rá bastante incisivo colocou um punhado de panfletos no bolso da sua camisa, com cara de poucos amigos.

As pessoas que já estavam em algum tipo de fila ficavam olhando para ele com uma mistura de desprezo e piedade. Havia famílias inteiras ali, mas também muitas pessoas solitárias. Percebeu que não estava mais bêbado no instante em que pensou que uma birita cairia bem, nem que fosse para molhar a garganta. Concluiu que não deveria haver nenhum tipo de bar por perto e que, consequentemente, um vendedor ambulante faria fortuna naquele lugar.

Estava perdido em pensamentos idiotas, quase afogado em panfletos, quando sentiu um puxão na perna. Olhou para baixo e viu uma figura em estado lastimável. Era um homem velho, com barba desgrenhada, vestindo um traje tão destruído pelo tempo que era impossível saber se tinha sido um poncho, uma túnica ou se ele simplesmente enrolara uma cortina podre no tronco. Quando o homem falou, era visível a falta de dentes. E o hálito. Como era possível haver um odor tão desagradável nessas condições?

"Eu sou Xalablung, O Esquecido. Aceite minha benção. Me escolha".

Xalablung se arrastava em meio à névoa, com as unhas sujas firmemente enterradas na sua calça. Ele tentou soltar sua perna, apenas para ver Xalablung voltar a grudar como um carrapato esfomeado. Seria uma dança cômica se não fosse bizarra. Não que ele estivesse indo para algum lugar em específico, mas aquele sujeito agarrado em sua perna estava retardando seus passos.

Xalablung falou que havia iluminado a antiga Cítia, desde os Montes Altai até a gloriosa Vukovar, ou algo assim. Por sua vontade, o ouro jorrava das fontes dos jardins dos sacerdotes e as colheitas eram abundantes, mesmo em tempos de seca. Disse que seu nome provocava temor e ódio em seus inimigos e que, certa vez, desceu à terra em forma de pavão e fecundado a esposa do Rei Carnassus III... enfim, uma ladainha danada. Para alguém intitulado "O Esquecido", Xalablung parecia se lembrar de coisas demais.

Com sua perna livre, deu um pontapé no ombro do inconveniente e seguiu seu caminho. Tinha outros problemas para lidar agora. Como saber onde tinha um banheiro, se fosse necessário.

"Boa tarde, o senhor já fez sua escolha?". Olhou para o lado e viu um rapaz estendendo outro panfleto. Estava prestes a dizer um palavrão quando ouviu outra voz. Não uma voz simpática ou lamuriosa, mas uma voz trovejante, para não dizer ameaçadora: "Gabriel Pedro de Jesus".

Sim. Era o seu nome. Seus pais tinham sido pessoas bastante religiosas. Torceu para não ser um deles chamando-o pelo nome, porque o tom não era agradável. E ele tinha cometido uns deslizes que teriam feito seus pais passarem vergonha, mas isso não vem ao caso.

Não era nenhum de seus pais. Era um sujeito enorme, de ombros largos e peitoral mais largo ainda. Vestia um terno impecável, acinzentado, e usava óculos escuros. E flutuava alguns centímetros acima da névoa, o que o deixava mais alto ainda.

"Sou eu", balbuciou, embora achasse desnecessário. Era óbvio que o outro sabia que ele era ele.

"Tens 60 segundos para tomares tua decisão".

Percebeu que a voz não saía dos lábios do homem, mas entrava direto em sua cabeça. Percebeu também que os entregadores de panfleto abriram uma distância segura entre eles e o sujeito. Respondeu a primeira coisa que lhe veio aos lábios, mas que deveria ser a última coisa que deveria ter dito:

"Senão...?"

"Tua eternidade será de dor e sofrimento, lamento e angústia, em um lugar destinado aos desgarrados". Pausa dramática e: "Tens 40 segundos agora".

Tinha um bolo de panfletos nas mãos, meia dúzia de filas. A moça simpática do panfleto de Odin acenou timidamente para ele. O militante de Rá cruzou os braços. Havia uma forte expectativa em torno dele, um momento esticado de tensão, o mesmo sentimento que ele mesmo experimentara inúmeras vezes tentando vender o pior imóvel possível pelo melhor preço possível. Sabia muito bem como era difícil passar uma espelunca pra frente. Resolveu arriscar.

"Quer saber? Eu escolho Xalablung, O Esquecido".

Houve um choque violento, talvez uma extensão tardia da freada brusca. Quando recuperou a consciência, torceu para estar em uma maca de ambulância e ter um paramédico em cima dele com uma máquina de ressuscitação. Ia contar isso para sua esposa e sua filha, dar gostosas risadas e colocar uma ou duas notas na cestinha de doações da igreja. ´

Estava olhando para o rosto encardido de Xalablung. E sentindo aquele hálito. Olhou ao redor. Tudo que via eram paredes descascadas, cobertas de infiltração. Não havia portas ou janelas. O chão era de ardósia, pelo menos, embora estivesse mal conservado.

Xalablung abriu um sorriso sincero, incompleto pela falta de dentes, mas sincero. "Obrigado".

Viu um mimeógrafo em um canto do aposento e percebeu o que tinha que fazer. Era mesmo uma oportunidade única. Precisaria de uns mil panfletos, muita lábia e alguns clientes, mas ele ia virar esse jogo. Xalablung não seria mais esquecido.

Ouvindo: Sam Hulickh - The Bitter End

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