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24 de junho de 2022

Kwati Shalta?

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Um dos grandes méritos de Far Cry Primal é nos apresentar uma era primitiva pouco visitada por qualquer mídia: os primórdios da raça humana e sua constante luta contra os elementos da natureza e sua própria brutalidade interior. Para se obter a melhor experiência possível, a Ubisoft foi atrás de um nível de realismo jamais visto na franquia: o idioma. Ainda que seja estranho ver os nativos das Ilhas Rook falarem inglês ou os habitantes do interior do Himalaia, seria possível imaginar que a língua tenha um apelo universal em um mundo globalizado. Nas profundezas do tempo, dez mil anos atrás, entretanto, isso soaria estranho demais, destoante, para os ouvidos dos jogadores.

Portanto, Far Cry Primal traz uma linguagem própria, distinta, primitiva, que evoca a Idade da Pedra e nos ajuda a mergulhar em seu universo. Porém, fiquei surpreso ao descobrir que: primeiro, existem três idiomas específicos dentro do jogo, cada um praticado pelas três diferentes tribos que disputam o vale; segundo, esses três idiomas são reais, extrapolações de uma linguagem ancestral, criadas por uma equipe de especialistas em linguística.

A base do que ouvimos no jogo é o Proto-Indo-Europeu (PDF), também conhecido pela sigla PIE. Não há qualquer registro dessa linguagem, seja escrito ou muito menos gravado em áudio, mas essa seria a raiz unificada do Sânscrito, das línguas germânicas, eslavas, romanas e gregas que deram origem a 400 idiomas humanos falados hoje desde as ilhas britânicas até as Índias, totalizando 3 bilhões de pessoas, mais da metade da humanidade atual.

O casal de pesquisadores Andrew e Brenna Byrd, da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, estudou a fundo o PIE, a ponto de extrapolar como teria sido sua pronúncia sete mil anos atrás. O casal realizou uma série de gravações para uma revista de arqueologia em 2014, baseando-se na transcrição de fábulas ancestrais recriadas em PIE nos anos 90. Esse trabalho chamou a atenção da Ubisoft, que colocou os Byrd para comandar um time de especialistas em linguística para fabricar as línguas faladas em Far Cry Primal.

A essa iniciativa se juntaram os catedráticos Chiara Bozzone e Ryan Sandell (da Ludwig Maximilian University of Munich, Alemanha) e a professora de Latim  Jessica DeLisi (da escola comunitária The Milken School, Estados Unidos), além de todo o departamento de linguística da UCLA (Universidade da Califórnia - Los Angeles). O resultado foi um léxico de mais de 2400 palavras, gramáticas inteiras para as três linguagens, 40 mil palavras pronunciadas em diálogos assessorados com dubladores treinados para esse desafio. Todo esse esforço está compilado no site de Andrew Byrd, com inúmeras seções dissecando o processo criativo envolvido e curiosidades (tem até xaveco em Wenja!)

Dus Shalam!

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Acredita-se que a versão mais pura do PIE tenha sido falado nas estepes próximas do Mar Cáspio sete mil anos atrás. A Ubisoft desejava algo ainda mais primitivo. Até porque, de certa forma, o PIE ainda soa familiar a nossos ouvidos. Era necessário criar algo que fosse Proto-Proto-Indo-Europeu.

Andrew Byrd explica essa relação em entrevista:

“Quero que as pessoas sintam uma sensação de admiração. Eu quero que eles joguem e pulem na água, e o Udam que os persegue grita ‘wódr’, e o jogador diga: 'espere, isso é loucura. Por que essa palavra soa como water ("água", em Português)? Por que é a mesma palavra?' Porque é, em essência, a mesma palavra. O proto-indo-europeu não é uma língua perdida da Idade da Pedra. É uma protolíngua, a ancestral de todas as línguas indo-europeias (...) Eu quero que as pessoas digam: 'espere um minuto – o inglês está conectado a todas essas línguas faladas ao redor do mundo?'. É realmente mágico. E normalmente apenas as pessoas que estudaram latim e grego sabem disso.”

Desta forma, os Izila, a tribo tecnológica e estruturalmente mais avançada do vale, utiliza uma versão muito próxima do PIE, com poucas alterações, baseada em estudos da UCLA. Em contrapartida, tanto os canibais Udam quanto os Wenja, que protegemos, falam uma versão mais arcaica do PIE, embora diferenciadas entre si. Esse tipo de convivência entre dialetos era e ainda é comum entre os povos. Na Idade da Pedra, essa simultaneidade de versões era inclusive a regra, uma vez que não havia uma padronização e tampouco a escrita.

A pesquisadora Brenna Byrd também explica como funciona o trabalho do linguista, como é possível ressuscitar uma linguagem que não possui registros escritos ou falados:

“Você pode construir de trás para frente a partir de linguagens semelhantes. A palavra inglesa 'father', a palavra latina 'pater'(no português, temos 'pai', derivado do Latim) e a palavra alemã 'vater' são todas obviamente semelhantes, sugerindo uma raiz comum. O estudo acadêmico por trás do Proto-Indo-Europeu é muito mais complicada do que isso, mas você entendeu".

Os pesquisadores precisaram resolver alguns imprevistos no caminho. No PIE, por exemplo, não há uma palavra conhecida pela Ciência para o animal iaque, presente no jogo. Para casos como esse, foram realizadas composições, juntando palavras e avaliando a forma mais prática de se nomear o elemento. "Iaque" virou então "vaca peluda", que pode ser construído como “Donsugawe”, no idioma Proto-Indo-Europeu acadêmico. Para o jogo, foi simplificado como "Dong". Outras adaptações também foram feitas para reduzir o volume de sílabas que deveriam ser pronunciadas pelos dubladores, sempre buscando a linguagem mais coloquial.

Reduções e simplificações fazem parte da evolução de qualquer idioma e Brenna cita que "goodbye" ("adeus", em inglês) originalmente era "God be with you" ("Deus esteja com você") e a contração foi sendo obtida ao longo de séculos de pronúncia. Podemos citar o caso semelhante de "você", na língua portuguesa, uma redução drástica do arcaico "Vossa Mercê", que já caminha para ser contraído novamente como "cê", nas conversas do dia a dia.

A Ubisoft estabeleceu um compromisso sem igual em sua busca por realismo, em um magnífico título que escapa da curva estabelecida pela franquia em que se insere. É uma combinação que dificilmente se repetirá. Andrew e Brenna Byrd se envolveram no desenvolvimento de The Anatolian Trail, um jogo independente de arqueologia com diálogos em PIE, mas o projeto está parado desde 2019.

Ouvindo: Theatre Of Tragedy - Cheerful Dirge (demo)

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