Retina Desgastada
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22 de fevereiro de 2022

Memorial

Personifiquem!

Para minha infelicidade, fui o primeiro a acordar. Um forte cheiro acre invadiu minhas narinas e revirou meu estômago muito antes de eu conseguir focar minha visão em alguma coisa. Tentei tossir, mas meus pulmões doeram e resolvi parar. Minha boca estava seca e eu não sentia o resto do meu corpo. A cabeça latejava e tudo o que eu queria era cair novamente nos braços do sono e me deixar levar para longe daquele cheiro, daquele silêncio maldito. Naquele momento, não fazia diferença quem eu era ou onde eu estava. Precisava dormir e esquecer, dormir e esquecer...

Cerrei os dentes quando ouvi um gemido no meio do vazio. Instintos. Pisquei os olhos com força e finalmente despertei. Gelei diante da realidade que surgia e meu corpo permanecia esticado no pó como um cadáver sujo e mal vestido.

O Trollen!

A resposta explodiu na minha mente e desfaleci por alguns instantes. Podia ver onde estava: uma das inúmeras câmaras subterrâneas de Gorgoria, igual a tantas outras, mas diferente por ser o possível túmulo dos audazes guerreiros do Círculo. Não conseguia precisar a extensão da gruta, havia muitas partes não-iluminadas pelas tochas e, por mais que eu quisesse, não seria possível virar o pescoço para olhar melhor.

Não localizei a criatura. O que significava que ela podia estar rondando as galerias à procura de novas presas ou vindo pelas minhas costas para acabar o que começou. Um pouco mais a frente estava o corpo de Nacnar. Não se movia. Estava paralisado como eu. Ou morto. Havia uma mancha seca de sangue ao seu lado que podia significar muita coisa. À esquerda dele jazia os restos de Murkih, o bárbaro da Merlísia, claramente morto com um talho irregular que começava no queixo e terminava violentamente no ventre. Se Velouria ou Tormaneider também haviam caído na armadilha do Trollen, então estavam fora do meu campo de visão. Havia alguém gemendo à minha direita. Achei que ia morrer também.


Personifiquem!

Karkaz estava paralisado bem na minha frente, mas caiu com o pescoço virado para o outro lado. Fazia pequenos movimentos com a cabeça. Também acordara. Tentei chamá-lo, mas tudo que saiu da minha boca foi um gemido tolo.

O ódio que ardia em meu corpo era mais forte que o mau-cheiro do covil do Trollen. Se Karkaz e Murkih não fossem tão precipitados, já poderíamos estar no Corvo Caolho emborcando o oitavo barril de cerveja. Ao invés disso, seríamos devorados a qualquer momento. Procurei afastar estes pensamentos, resolveria tudo mais tarde, se houvesse mais tarde.

A Lança de Spoorah ainda estava firme em minha mão. Conseguindo mover o braço e murmurar as Palavras, estaria salva... Contudo, o toque do Trollen ainda se espalhava pelo meu corpo e nenhum músculo respondia. Eu precisaria de um...


Sucesso Decisivo! Gritou o Mestre.

Olho para Carolina e ela entende o que eu estou pensando. O novato tinha se perdido: colocara uma Fera de Classe M na nossa frente e agora estava facilitando para salvar a aventura. Marcos parece se animar. Do jeito que as coisas estão andando, não me surpreenderia com uma Ressurreição ou Intervenção Divina.

Sinto falta do Fernando. Sinto falta do grito:


Personifiquem!

Podia ouvir os passos da coisa. Não era um fruto da imaginação ou um sonho ruim. Era real. O Trollen estava voltando. E não havia nada que Karkaz, o Ousado, pudesse fazer para impedir ou para anular o medo. Nada. Meus companheiros estavam prostrados ou mortos naquela caverna nauseabunda. Minhas espadas haviam se partido na couraça o monstro.

Rezei para os Deuses de meus ancestrais e fechei os olhos. Na mente apenas as batidas do coração e os passos cada vez mais próximos.


Personifiquem!

Sentia-me como se algum mago houvesse despejado uma poção ácida no meu sangue. As pernas ainda não estavam muito firmes e a ceia da noite anterior se espalhava como fogo na barriga. Mas estava livre do encanto do Trollen.

Dei uma boa olhada em torno, para me inteirar da situação. Murkih estava morto. Nacnar dormia, a julgar pelo ritmo da respiração. Karkaz tinha uma expressão assustada no rosto, mas parecia bem. Tormaneider não estava na gruta; a verdade era que o estranho Gigante havia sumido durante a batalha.

Passos. Ergui-me em posição de batalha, lança em riste. Então, algo estranho aconteceu com o corpo de Murkih.


Intervenção Divina! Anunciou o Mestre.

Olho para João Pedro e percebo que ele mal consegue conter o riso. “Galerias de Gorgoria” transformou-se em outro jogo. Rolamentos excessivos, consultas ao Livro Básico e seus Nove Complementos, monstros Antigos em profusão e o clima de “Sessão da Tarde” com Doritos. Não era para ser um jogo, certo? É a nossa Saga. Minha, de João Pedro, Marcos e Sérgio. Velouria, Karkaz, Murkih e Nacnar. E Fernando. O criador. Aquele que dava a ordem:


Personifiquem!

Quando abri os meus olhos, eu não acreditei naquilo que via. Velouria transpassava Tormaneider com sua lança e, enquanto um sangue esverdeado jorrava da ferida do Gigante, sua carne se transformava. A identidade de nosso recente aliado se revelava: um Polimorfo, um dos Fungóides da Rainha Creena! Erradamente supomos que a ameaça deles havia sido eliminada. Era algo para investigarmos no futuro.

O Polimorfo se debatia contra a Lança, tentando remove-la de seu corpo. Velouria parecia prestes a fraquejar quando Murkih(!), envolto em uma aura dourada, surgiu por trás da criatura e partiu-a em duas com um único golpe de seu machado beloriano.


Personifiquem!

A ressurreição de Murkih não podia ter sido em melhor momento. Aquele Fungóide parecia ignorar a Magia da Lança de Spoorah, fato que eu julgava impossível. E fora bastante astuto para nos conduzir ao covil do Trollen. Com certeza, um espécime raro. E, se o Poço dos Horrores da Rainha Creena havia sido reaberto... Talvez tivesse sido melhor captura-lo para interrogatório.

Não importava. Era urgente remover Karkaz e Nacnar dali e voltar à superfície antes que o Trollen nos reencontrasse. Por isso, respirei fundo naquela gruta fétida e me preparei para o que ainda seria uma longa jornada.


Fim da Sessão! Proclamou o Mestre.

Se as aventuras do Círculo continuariam na semana que vem já não parecia mais ter tanta importância. Carolina guardava sua ficha com o olhar triste. “É apenas um jogo, como War ou Banco Imobiliário”, nos disseram. Não era verdade. Não quando Fernando gritava: Personifiquem! Não quando nós cumpríamos essa ordem.

O momento acabou. Muitos de nós desistiram quando Fernando partiu. Somos os últimos a explorar as Galerias de Gorgoria e, mesmo nós, desistiremos, lentamente.

Carolina e eu ficaremos até o final. Porque sabemos. Onde quer que Fernando esteja, ele está gritando. Nós ouvimos.


Personifiquem!


(digitado em maio de 2007, a partir de um manuscrito de data indeterminada)

Ouvindo: Atsushi "sushi" Kosugi - Sir Gawain Appears

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