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9 de dezembro de 2021

Lei de Poe

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Quando Swift propôs o consumo de bebês de irlandeses pobres como uma solução social, lá em 1729, ninguém em sã consciência acreditou que o autor (mais conhecido pelo igualmente satírico As Viagens de Gulliver) estivesse sugerindo, de fato, canibalismo. Ele é um dos exemplos mais ensinados do uso da ironia como gênero literário para se atingir uma crítica social. Desde então, a sátira vem sendo empregada como ferramenta para hiperbolizar os defeitos daquilo que se deseja apontar. Infelizmente, nem sempre o efeito desejado é atingido.

Desde sua criação, o universo brutal de Warhammer 40K caminha no fino limiar da sátira. Influenciada pelos trabalhos da britânica 2000 AD nos quadrinhos (particularmente o hiperviolento e autoritário Juiz Dredd), a conterrânea Games Workshop desenvolveu uma visão tão niilista do futuro da civilização humana que ninguém em sã consciência desejaria viver nessa realidade. Aqui temos um culto militarista à figura de um imperador divino, uma teocracia calcada no uso escancarado de genocídio contra outras raças, em que o diferente, o mutante, o herege, deve ser expurgado literalmente da existência. No fundo, era uma crítica ao aparato estatal do início dos anos 80, o mesmo zeitgeist tipicamente inglês que também gestaria V de Vingança, outra obra cujo tempo deformou o significado.

comissarHá de se argumentar que o Império dos Homens do ano 40.000 é a única estrutura possível de assegurar nossa sobrevivência diante de um universo assolado por legiões incontroláveis de bárbaros (os Orks), uma raça igualmente xenófoba e tecnologicamente superior (os Eldar), um enxame de insetos colossais que tudo consomem (os Tyranids), múmias cibernéticas indestrutíveis (os Necrons) e literais demônios do Caos que habitam uma espécie de Inferno (o Caos). É um cenário tão desprovido de esperança que a melhor raça, aquela que tenta pregar uma mensagem de paz e união, usa armas nucleares sem medo de ser feliz (os Tau). Ninguém é santo na criação da Games Workshop, não há espaço para agendas positivas ou pautas sociais, apenas a manutenção mais básica de nossa vida um dia de cada vez e que o Imperador seja louvado por isso.

Há de se argumentar também que, aparentemente, esse futuro distópico atingiu, do seu jeito, a igualdade de gêneros e de raças. Não há distinção entre homens e mulheres, entre negros e brancos: todos estão no mesmo barco onde a violência é praticada contra outros tipos de "diferentes". No ódio ao que vem de fora, no medo do que vem de fora, e no amor inquestionável àquele que se senta no trono, todos são iguais.

Porém, é impossível ignorar que a iconografia e a atmosfera desse futuro satírico estejam tão intrinsecamente ligados ao maior movimento fascista da História real de nosso mundo. Desde a obsessão por um líder absoluto, passando pela mensagem geral de que apenas através da aliança inquebrantável e da ausência de individualismo seremos fortes, mas também nos pequenos detalhes, como a fixação no Totenkopf ou a estética das roupas de seus oficiais.

Incapazes de perceber a linha fina que separa a sátira do discurso extremo, fascistas reais ou potenciais tendem a gravitar em torno dos temas de Warhammer 40k como se tudo fosse uma glorificação. Afinal, como já dizia Gessinger, "o fascismo é fascinante e deixa a gente ignorante e fascinada".

Onde a Linha é Traçada

Essa aparente dicotomia não foi um obstáculo para a ascensão de Warhammer 40K como um motor cultural (a Blizzard bebeu muito dessa fonte na criação de seu StarCraft). Em seus primórdios, estava evidente para a vasta maioria que a Games Workshop não coadunava com regimes autoritários e os limites da ficção e da crítica estavam bem definidos. Em uma época mais galante, a suástica era aquilo que seu avô tinha destruído ou uma bobagem para se rabiscar na mesa da escola para posar de radical. Ninguém esperava que ele pudesse se tornar uma sombra incômoda no século XXI.

No começo de novembro desse ano, durante um torneio de Warhammer tradicional realizado na Espanha, o GT Talavera, um dos competidores compareceu na arena trajando indumentária nazista e com o apelido nada sutil de Pintor Austríaco. A organização do evento (que não é vinculada oficialmente à Games Workshop) nada teria feito para demover o rapaz de seus delírios, inclusive, concedendo-lhe prêmios por seu desempenho na competição. Porém, como diz aquele ditado que não existe, "quando um nazista senta na mesa, quem não se levanta também é nazista", diversos competidores simplesmente abandonaram o evento diante da sua presença.

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O incidente ganhou peso na comunidade de jogadores e, semanas depois, os organizadores do GT Talavera lamentaram a presença do Pintor Austríaco e explicaram que estavam de mãos atadas. Em conversa com o competidor, que admitiu sua admiração pelo nazismo, não foi possível convencê-lo a ir embora. Pelas regras do evento, nada poderia ser feito. Pelas leis da Espanha, não é crime exibir ou promover ideais nazistas (uma incongruência dado o passado franquista do país). Pelo contrário, se o projeto de juventude hitlerista tivesse sido efetivamente conduzido para fora do evento, ele poderia ter processado os organizadores por "discriminação ideológica".

Foi então que o assunto chegou em quem deveria chegar: na Games Workshop. A empresa foi obrigada a declarar textualmente o que deveria ser óbvio para todos. Segue a íntegra traduzida (grifos originais):

Não há mocinhos no universo Warhammer 40.000.

Nenhum.

Especialmente não o Império do Homem.

Suas incontáveis ​​legiões de soldados e fanáticos abrem caminho pela galáxia, matando qualquer pessoa e qualquer coisa que não adira à sua visão cega de pureza. Quase todo homem e mulher labuta na miséria, seja no campo de batalha - onde a sobrevivência é medida em horas - ou nas incontáveis ​​manufaturas e favelas que abastecem a máquina de guerra imperial. Tudo isso em servidão servil ao cadáver de um Deus-Imperador cujos mandamentos são, na melhor das hipóteses, apenas parcialmente lembrados, distorcidos pelo tempo e pela falibilidade da Humanidade.

Warhammer 40.000 não é apenas sombrio. É o mais sombrio dos sombrios.

O Império do Homem representa um conto de advertência do que poderia acontecer se o pior da ânsia de poder da Humanidade e da xenofobia extrema e inflexível se instalasse. Como tantos aspectos de Warhammer 40.000, o Império do Homem é satírico.

Para maior clareza: a sátira é o uso de humor, ironia ou exagero, exibindo os vícios das pessoas ou as falhas de um sistema de desprezo, escárnio e ridículo. Algo não precisa ser maluco ou engraçado para ser sátira. O escárnio está na ampliação do cenário de um regime tirânico e genocida, que chegou ao 11. O Império não é um estado de aspiração, fora das perspectivas dentro do universo daqueles que são escravos de seus sistemas. É uma civilização monstruosa, e sua monstruosidade está à vista de todos.

Dito isso, certos grupos de ódio do mundo real - e adeptos de ideologias históricas melhor deixadas no passado - às vezes procuram reivindicar propriedades intelectuais para seu próprio prazer e cooptá-las para seus próprios interesses.

Já dissemos isso antes, mas um lembrete sobre o que acreditamos:

“Acreditamos e apoiamos uma comunidade unida por valores compartilhados de gentileza e respeito mútuos. Nossos cenários de fantasia são sombrios e sombrios, mas isso não é um reflexo de quem somos ou de como sentimos que o mundo real deveria ser. Nunca aceitaremos nem toleraremos qualquer forma de preconceito, ódio ou abuso em nossa empresa ou no hobby de Warhammer. ”

Se você vier a um evento ou loja do Games Workshop e se comportar de forma contrária, incluindo o uso de símbolos de grupos de ódio do mundo real, será solicitado que você saia. Não vamos deixar você participar. Não queremos o seu dinheiro. Não queremos você na comunidade Warhammer.

Para aqueles heróis que estão realizando seus próprios eventos em Warhammer, adoraríamos que você se juntasse a nós nessa posição.

Ao longo dos anos, tivemos a sorte de apoiar eventos como AdeptiCon, o Las Vegas Open, Blood & Glory e muitos, muitos mais com terreno, prêmios e bolsas de brindes. Também fornecemos funcionários para ajudar com questões de organização e regras, e para julgar competições de pintura e seminários.

Se você precisar de ajuda para organizar um evento, incluindo a criação de uma experiência segura e gratificante para seus participantes, estamos aqui para ajudar. Basta enviar um e-mail para nossa equipe de eventos em [email protected]. Adoraríamos ouvir de você e estamos prontos para oferecer todo o suporte que pudermos.

Em um presente distópico, em que o Justiceiro precisa enviar um recado para a polícia, onde não se percebe que Paul Atreides jamais foi um "salvador branco", muito pelo contrário, em que você precisa explicar que One Piece sempre foi político, uma "mente desconfiada é uma mente sadia".

Ouvindo: Nigoro - Electric Prophet

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