Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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9 de janeiro de 2022

Jogando: Bioshock

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Eu poderia escrever um extenso pedido de desculpas sobre como não gostei de Bioshock, embora tenha terminado o jogo (no modo Fácil). Ao invés disso, gostaria de focar no esperançoso fato de que ele foi o primeiro título que concluí em 2022, depois de sete meses me arrastando pelos corredores de Rapture, em sessões extremamente espaçadas. Entender a fama de Bioshock e entender minha relação conturbada com ele estão intimamente atadas ao mesmo elemento: a época, o zeitgeist que o cerca.

Em seu lançamento, Bioshock tinha a pretensão de ser um sucessor espiritual do magnífico (mas possivelmente datado System Shock 2, favorito da casa). Essa informação pode ter se perdido no tempo depois que Bioshock em si se tornou uma franquia com asas próprias e System Shock prepara um retorno se agarrando a suas raízes de survival horror. O fato é que Bioshock é um survival horror que se pretende FPS e está tão próximo desse último gênero que trouxe um sopro de "novidade" para um mercado saturado por conflitos militaristas pseudo realistas.

Em sua época original, Bioshock, portanto, convidava o jogador de FPS para um pesadelo. Desprovido de suas coberturas, isolado do vigente sistema de cura automática, equipado com armas quase improvisadas e utilizando superpoderes, o jogador da nova geração de FPS era surpreendido com uma ode aos velhos tempos ou o que teria acontecido com a evolução dos FPS se Call of Duty tivesse fracassado no mercado. Há muito de Shadow Warrior (o clássico) ou Blood em Bioshock, aquela luta frenética pela própria vida, com inimigos surgindo do nada, fugindo de sequências encenadas, em corredores convolutos.

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Tampouco há qualquer sopro de heroísmo épico nas profundezas do Oceano. Não há honra, camaradagem e o destino do planeta não está em suas mãos. Lutamos por nossa sobrevivência, lutamos pela verdade em uma terra de mentiras, com um pouco de compaixão e menos pragmatismo, talvez seja possível lutar pela salvação de uma pequena parcela de Rapture, mas o jogo não deixa essa possibilidade escancarada. O jogador é um "forasteiro" nas ruínas de uma utopia que deu muito errado, um tema muito familiar para quem atravessou os System Shock anteriores. Chegamos atrasados na decadência, perdemos o brilho do que deveria ter dado certo e colhemos apenas os escombros da sociedade sufocada por suas próprias falhas psicológicas. O paraíso racional e objetivista de Ayn Rand fracassa da pior maneira possível. Bioshock é um jogo sem esperanças ou otimismo, que sufoca mas traz um lirismo macabro ao mesmo tempo.

Há uma reviravolta inteligente no meio do jogo, mas a trama se sustentaria mesmo sem ela. Fico feliz que Bioshock não aposta todas as suas fichas no truque. O que Ken Levine e sua Irrational Games fizeram foi construir uma atmosfera tão palpável quanto angustiante. Esse mérito lhes é inegável: sempre foram magníficos construtores de universos em que o principal desejo do jogador é gritar e buscar uma saída dali, de preferência com sua sanidade intacta. A construção dos cenários de Rapture (embora seja somente um aperfeiçoamento do que System Shock 2 já trazia) é um estudo de caso para jogos de todo tipo, cada ambiente transpirando narrativa, em que praticamente cada elemento largado pelo caminho é uma peça de um grande quebra-cabeça, uma paisagem do Inferno, um espaço onde pessoas sofreram, morreram ou foram transformadas quando tudo que queriam era fugir do mundo normal. Navegar abaixo do nível do mar, onde a natureza teima em reconquistar e purificar esse mundo, é uma experiência ímpar.

Por tudo isso, é inegável que Bioshock tenha deixado seu nome inscrito na história dos jogos eletrônicos. O que não necessariamente significa que Bioshock seja um título que agrade a todos os públicos ou que tenha sobrevivido incólume ao teste do tempo.

Would You Kindly?

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Foi um grande erro abrir Bioshock no ano de 2021. Não apenas porque o distanciamento temporal poderia afastar o jogo de seus méritos inerentes de sua época ou poderia acontecer uma comparação injusta com títulos que vieram depois e se aproveitaram de seu pioneirismo. Mas, também (ou sobretudo) porque 2021 não foi um bom ano para mergulhar na experiência depressiva de Bioshock. Aqui estávamos nós lutando contra uma aparentemente inevitável decadência por questões sanitárias, depois de termos tentado inicialmente lutar como uma Humanidade unida contra um inimigo comum. E ali dentro de Rapture, o processo se repetia, em estado ainda mais avançado: o colapso do contrato civilizatório, apesar das boas intenções, em meio a um conflito de interesses egoístas de grupos obcecados pelo poder. Saía do horror do mundo real para ver seu espelho profético nas profundezas do oceano.

Talvez esse paralelismo tenha tornado meu olhar mais aguçado para o que acho a principal falha de Bioshock: suas mecânicas excessivas. Para um FPS, há elementos gerenciáveis demais, minijogos demais. Para um jogo de survival horror, há combates demais e muito pouco tempo para se respirar e absorver a sensação de paranoia.

Bioshock exige que o jogador alterne entre um número grande de armas, cada uma delas com opções de munição alternativa, ao mesmo tempo que troca de poderes com outro conjunto de botões, para derrubar inimigos mistos com múltiplas vulnerabilidades, enquanto também se tenta tirar vantagem das características ambientais de cada cenário, tudo isso no ritmo pulsante de qualquer FPS, realizando esquivas e mantendo o olho no mostrador de vida. É exaustivo, mas pode significar a diferença entre a vida e a morte. É preciso traçar táticas em frações de segundo ou simplesmente confiar sua sobrevivência na arma com a maior quantidade de munição possível e torcer pelo melhor.

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Não por acaso, me vi reduzindo a dificuldade de Normal para Fácil no meio da partida, um recurso que também utilizei em System Shock 2. Porém, enquanto naquele jogo, foi o ponto de virada para curtir efetivamente o jogo e marcar um ritmo mais compassado para mim, aqui, foi um recurso indispensável que apenas tornou minha travessia suportável. Ironicamente, a parte mais divertida de Bioshock foi a fase em que me foi removida a possibilidade de escolha de meus poderes. Com uma preocupação a menos, foi uma oportunidade de concentrar meu foco em outros aspectos dos combates. Em contrapartida, reduzir a dificuldade se mostrou um banho de água fria na batalha final, que perdeu totalmente seu peso dramático.

A constância de inimigos e sua periculosidade removeu também a paranoia: não era uma questão de se há ou não há uma monstruosidade me esperando na próxima esquina, é certo que o encontro aconteceria. Essa permanente tensão, agravada pelo constante renascimento de inimigos em áreas já "pacificadas", tornava cada sessão de Bioshock em uma sessão de agonia, novamente, em um ano já tão conturbado.

Entendo que a Irrational Games tentou aqui oferecer uma ampla gama de opções para os jogadores escolherem sua jogabilidade (alguns casos até bem fora da curva, como a possibilidade de encarar todos os problemas somente com a chave inglesa na mão). Experimentei diferentes combinações de habilidades, armas e munições e nenhuma delas me pareceu confortável. Não encontrei meu lugar em um jogo que foi projetado para diferentes tipos de jogadores.

Como resultado, minha peregrinação por Rapture aconteceu em surtos, com semanas de intervalos entre um avanço e o próximo. A narrativa e o cenário me convidavam para uma amarga jornada, as mecânicas me chicoteavam pela ousadia de retornar ao jogo. Ao mesmo tempo, não queria repetir o fiasco de Risen 2. Enxergava em Bioshock um título que merecia ser concluído.

Tudo esse conflito terminou de uma forma inesperada. Após uma arrepiante cena conclusiva, o epílogo, me fez ver que, afinal, tomei a decisão certa. Em um jogo que brinca com a impossibilidade de escolher seu próprio destino, eu havia decifrado o enigma e traçado meu término. Se cada um fizer sua parte, pensar no próximo na hora de fazer suas escolhas, abrir a mão, talvez possamos juntos sair desse horror e já não sei mais se estou falando de Bioshock. É abrir um ano novo, virando a página de um ano ruim.

Ouvindo: Zwischenfall  - Flucht

2 comentários:

raphael aremusica disse...

Interessante essa análise, Aquino. Eu joguei Bioshock faz muitos anos já, não lembrava dessa variedade tão grande de opções que te causou tanto impacto assim e fiquei até curioso pra testar novamente pra me lembrar.

Recordo muito do clima de destruição e decadência que você tão bem explanou e pra mim foi o que ficou mais marcado na memória mesmo. Acredito que se você tivesse jogado em outro momento, talvez tivesse tido uma percepção diferente, como você mesmo destacou.

Um ótimo 2022, espero que todos os desejos que você colocou para um ano melhor se concretizem, depois desse período de trevas negacionistas.

Luis Felipe disse...

Muito interessante sua análise. Eu concordo plenamente que o jogo oferece coisas demais, mas minha crítica é o fato de que ele apresenta um monte de coisa que vc não tem pq usar. Como um cara acostumado a FPS tradicionais, eu peguei a metralhadora e foi só o que usei até o fim do jogo, raramente usei os poderes.
Uma pena que não curtiu Bioshock, para mim, a ambientação e a maneira que ele conta a história são incríveis e foi algo muito revolucionário quando joguei.

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