Retina Desgastada
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16 de dezembro de 2018

2028

Foi em 2028 que a Humanidade descobriu finalmente a resposta para uma das três perguntas que nos perseguiam desde a aurora dos tempos: para onde vamos. Ainda não sabíamos de onde vínhamos nem o que estávamos fazendo aqui mas, pelo menos, sabíamos para onde estávamos indo: Alpha do Centauri.

Cada um dos bilhões de pessoas que tinham vivido na Terra e batido as botas estava em Alpha do Centauri. Incluído minha tia Marlene, que nunca foi com minha cara e passou boa parte da sua vida reclamando da unha encravada.

De acordo com os astrônomos, a Mega Terra que girava em torno da estrela estava impregnada de "protoplasma consciente e emanações mnemônicas transmitidas". O que a imprensa logo batizou de "fantasmas", porque era mais fácil de explicar, dava mais cliques e não estava muito longe da verdade. Pelo menos não muito mais do que a média das notícias. O fato era simples: quem morria, ia para Alpha do Centauri e iniciava uma nova vida.

Isso nem era tão chocante, porque Alpha do Centauri estava tão distante da nossa realidade quanto o Céu cristão ou o Valhalla, então daria tudo no mesmo e a gente podia continuar com nossa vidinha por aqui se não fosse por um detalhe: os mortos estavam furiosos com a gente e tinham declarado guerra. Esse é o tipo de novidade que estraga o dia de alguém.

As primeiras mensagens não vieram por meio de médiuns ou paranormais ou sacerdotes, mas foram captadas por radiotelescópios em quase todo os pontos do planeta ao mesmo tempo. De início, poderia ser confundido com o ruído de fundo do universo ou com o som alto do vizinho em tarde de Domingo, até que alguns matemáticos decifraram aquilo tudo e o resultado era mesmo uma mixórdia de ódio, horror, violência e ameaças. Os fantasmas estavam vindo pegar a gente.

Desde que tia Marlene sufocou com aquele pedaço de pão eu tinha medo de que isso pudesse acontecer. Não exatamente que ela viesse em uma espaçonave feita de ossos cruzando o vazio sideral em velocidades superiores à da luz, mas eu tinha medo que ela viesse puxar meu pé de madrugada.

Apenas que "tia Marlene" não estava ali no meio da Legião da Meia-Noite como a imprensa batizou aquela frota de fragatas do tamanho de cidades inteiras. E não que elas fossem feitas de ossos propriamente ditos, mas ninguém pode ignorar que os mortos tinham um senso estético meio macabro e as primeiras imagens que apareceram nos telejornais causaram um arrepio na espinha de muita gente. Segundo os especialistas, era tudo parte de uma tática de guerra psicológica. Fantasmas. Pilotando naves de ossos. Com caveiras. E se comunicavam por uma cacofonia infernal. É. Estava funcionando, porque o pânico se espalhou.

A Legião da Meia-Noite era formada por um amálgama de consciências, um zeitgeist de personalidades, experiências, memórias e conhecimentos que respondia como uma coisa só, então eu podia ficar tranquilo porque tia Marlene certamente não se lembrava de mim e, se lembrasse, tinha objetivos maiores em mente, como a extinção da raça humana como um todo. Na época, isso não me trouxe qualquer alívio, como podem imaginar. Se estávamos interpretando as mensagens corretamente, Alpha do Centauri estava lotada e havia um limite físico para a quantidade de entidades que podia comportar. Então, eles usaram suas habilidades de manipulação de matéria para cruzar a distância entre nós e retomar seu planeta de origem.

Tentamos dialogar de todas as maneiras possíveis, apelar para seus sentimentos (como se tia Marlene tivesse algum que não fosse direcionado ao seu gato, o igualmente finado Teobaldo). Oferecemos a Lua como refúgio para nossos falecidos, talvez Marte. Ameaçamos com uma guerra sangrenta e juramos que jamais desistiríamos da luta. Parece que alguns diplomatas foram sacrificados para poder conversar diretamente com a armada que se aproximava, mas nunca consegui confirmar esse rumor.

Quando a Legião da Meia-Noite entrou em órbita, a gente fez a única coisa que restava: tretamos.

Foi muito bonito ver as ogivas nucleares subindo para além da estratosfera e detonando no espaço. O espetáculo iluminou o céu com luzes diáfanas que encobriam o fato de que estávamos destruindo também nossa rede de satélites e ficaríamos sem TV a cabo e serviços de streaming pela próxima década, mas todos achavam que era um preço pequeno a se pagar. Estávamos garantindo nosso futuro, despachando nossos entes queridos uma segunda vez, mas, ei, eram eles ou nós. Muitas fragatas foram pulverizadas em lampejos nucleares lá em cima e aqui embaixo o pessoal soltava fogos de artificio e dava tiros para o alto. Possivelmente alguns bebês foram feitos naquelas noites loucas.

A retaliação veio dois dias depois e até hoje estamos tentando entender o que aconteceu. Washington e Moscou foram obliteradas sem aviso, deixando duas exatas crateras em forma de triângulo no lugar onde antes havia cidades e algumas dezenas de milhões de habitantes. Sem radiação, sem explosão, sem ondas de choque e sem sobreviventes. Entretanto, tínhamos dois triângulos tão perfeitos quanto nossos instrumentos eram capazes de medir.

Evidentemente, a cúpula dos governos norte-americano e russo já não estava mais em suas respectivas capitais já tinha muito tempo, então havia gente de sobra para ordenar que a guerra continuasse. Uma coisa leva a outra e atacamos novamente com mais mísseis nucleares. Era um bom uso para nosso vasto arsenal e o dinheiro dos contribuintes não seria desperdiçado. Os analistas militares acreditavam que a capacidade bélica do inimigo já havia sido demonstrada, mas precisávamos conhecer sua capacidade de sustentar o conflito.

Era muito boa. Nossa, como era boa. Nas vinte e quatro horas seguintes perdemos Londres, Los Angeles, Nova York, Paris, Tóquio, Canberra, Montreal, Veneza, Oslo, Buenos Aires, Johanesburgo, Dubai, Pequim, Barcelona, Cidade do México, Nova Orleans, Sydney, Nova Délhi e Piracicaba. Todas convertidas em um triângulo vazio no chão por forças arcanas que não conseguíamos compreender. Foi detectado também por algumas testemunhas um leve cheiro de guacamole onde antes havia a Cidade do México, mas muitos argumentam que já era assim antes. No dia seguinte, uma nova leva de cidades seguiu o mesmo caminho e no dia depois daquele houve uma reprise. A contagem de mortos passava do bilhão.

Estávamos claramente em inferioridade tática naquele momento e fizemos o que tinha de ser feito: capitulamos. Oferecemos uma trégua, quem sabe os visitantes (e agora eles eram chamados de visitantes) não poderiam ficar com a África? E uma parte da América do Sul? Claro que as populações locais não foram consultadas, mas como elas poderiam negar as boas-vindas a nossos estimados antepassados? Naquele momento até eu estava achando que não seria nada mal ter tia Marlene por perto outra vez. Ela sabia fazer um doce de mamão que nunca mais comi na vida.

A Legião da Meia Noite respondeu com silêncio. Sem bravatas, sem aquele ruído ensurdecedor de congelar a alma. Aqui embaixo, tínhamos a certeza de que nossa hora havia chegado e logo todos nós faríamos parte de seu zeitgeist. Com sorte, alguns de nós ficariam por aqui mesmo e rearranjaríamos a realidade para o que quer que eles chamavam de cotidiano lá em Alpha do Centauri.

O silêncio persistiu por uma semana. Sem novos ataques. Inclusive de nossa parte, porque ninguém queria cutucar a onça com vara curta.

Depois de sete dias da Vergonhosa Derrota (os jornais, sempre com seu pendor para o drama), a frota invasora fez meia volta e iniciou a jornada para retornar a Alpha do Centauri.

Eles fizeram a gentileza de explicar que a guerra não era mais necessária. Aquele bilhão extra de gente que eles tinham matado aqui foi a última gota e Alpha do Centauri tinha sofrido um "colapso telúrico" (palavras deles ou erro de tradução, jamais saberemos). Sua sociedade estava um caos: mais de três quartos da população do planeta tinha desaparecido misteriosamente, sofrendo uma segunda morte e indo sabe-se lá para onde. Agora, os novos mortos, os nossos mortos, eram uma espécie de elite local. Tia Marlene e sua patota não apitavam em mais nada e os arrivistas tinham decidido acabar com aquela palhaçada. Desculpa qualquer coisa aí, boa sorte pra vocês.

Aqui na Terra, foram três dias de comemorações, bebedeira, feriado, tiro pro alto e muitos bebês foram feitos.

O que explica porque nove meses depois nós descobrimos de onde viemos. E houve guerra.

Ouvindo: Cristopher So - Secure (Remix) (Resident Evil Remake)

9 comentários:

Diego Augusto (@dieaug) disse...

Eu estava me preparando para dormir. Já deitado. Olhei para o lado e, como qualquer pessoa vivendo no século 21, peguei meu celular. Cliquei no ícone azul do meu aplicativo de RSS e pensei:que curioso, uma nova postagem do Desgastada. Cliquei novamente, agora naquele curto título: 2028. Pensei, cansado de retrospectivas, teremos agora previsões para daqui há uma década. Que curioso. Mas, pego de surpresa fui com essa excelente narrativa e agora estou de pé no quarto aplaudindo (exageros na descrição para efeitos dramáticos). Agora, a pergunta que fica: porque Piracicaba?

Diego Augusto (@dieaug) disse...

Aproveitando o ensejo, nunca pensou em mudar o sistema de comentários do blog? Um disqus da vida, talvez... Fica a sugestão.

Marcos A.T. Silva disse...

Sensacional, Aquino. Muito bom mesmo Uma pergunta: isso faz parte de algo que você já desenvolve há algum tempo (existe mais conteúdo relaciona) e/ou você pretende expandir, se é que há espaço, quero dizer?

C. Aquino disse...

Diego, sobre Piracicaba, é um daqueles mistérios que não nos é dado compreender, um enigma do universo. E sobre o Disqus, já pensei em migrar, mas sempre travo no dilema de ter que migrar quase 10 mil comentários para o novo sistema.

Marcos, essa era uma premissa que já vinha martelando em meu cérebro por anos: uma guerra entre os vivos e os mortos, onde os mortos teriam uma clara vantagem, já que seu exército só cresce. Entretanto, como imaginava uma história épica e complexa, nunca sentei para escrever ou sequer imaginar mais detalhes (além das naves de osso). Até que essa semana tive um estalo e a história me veio quase completa com outro viés: o humor.

Marcos A.T. Silva disse...

Muito interessante. E gostei do das pitadas de humor também. ;)

Unknown disse...

Você produz um conteúdo incrível. Acompanho o blog já faz alguns anos e não deixo de ficar maravilhado com todos os posts. Parabéns pelo trabalho e continue assim. Aliás, que texto original, gostei bastante.

Michael Andrade disse...

Que texto maneiro! Eu quero ler mais! A cada parágrafo minha ansiedade aumentava imaginando se eu estava lendo algum trecho de um futuro novo livro seu. Bom demais!

Helder disse...

Publica logo a segunda parte kkk muito bom mesmo!

Bruno Dionizio disse...

Muito bom.

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Blog criado e mantido por C. Aquino

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