Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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4 de maio de 2018

(não) Jogando: Solo

(publicado originalmente no Gamerview)

Solo 02O que é o amor? É imortal, posto que é chama? É fogo que arde sem se ver? É um bichinho que rói, rói, rói? Esse é um questionamento que persegue homens e mulheres desde que o mundo é mundo e, geralmente, não encontra seu espaço entre saltos de plataformas, tiroteios frenéticos, gerenciamento de recursos, combos especiais e outros badulaques dos jogos eletrônicos.

A pequena desenvolvedora espanhola Team Gotham não se intimida diante do desafio milenar e, em Solo, mergulha fundo nos abismos da introspecção, em um título que nos convida a responder por nós mesmos essa grande dúvida, enquanto nos apresenta um arquipélago visualmente inesquecível.

Apenas um náufrago, uma ilha perdida no mar

Solo acompanha um personagem vagando por um conjunto de ilhas em um oceano desconhecido, em busca do amor perdido, do fim para sua solidão ou simplesmente em busca de explicações. Não nos cabe entender o destino de sua jornada, seu ponto de partida ou seu ponto de chegada. Na prática, o jogo se prende a uma metáfora para o dilema do amor, um poema narrativo em forma de jogo, onde palavras, sensações e cores serão seus guias.

Solo 11

A Team Gotham busca desde o início criar uma intimidade com o jogador e esse precisa aceitar a proposta. Seu personagem pode ser homem, mulher ou neutro, jovem ou velho, hétero, homossexual ou bi – todas as formas de amor são válidas, sem julgamentos ou bandeiras levantadas. Solo quer apenas que você seja autêntico.  Falhe nesse quesito e boa parte do seu encanto se quebrará, uma vez que cabe mais ao jogador do que ao jogo em si encontrar o significado do amor, através de uma sucessão de questionamentos referentes ao tema, como outros relacionamentos, sexo, defeitos, brigas etc.

E prepare-se, pois ele irá fazer perguntas duras. É uma pena que o jogo não esteja localizado e você vai precisar de Inglês acima da média para entender os questionamentos e as colocações.

 Solo 08

Entre uma filosofia ou outra lançada ao ar e entre dúvidas que nos assombram desde sempre, o jogador vai resolvendo enigmas físicos que desbloqueiam novas ilhas onde a jornada irá continuar.

Outro dia solitário, com ninguém aqui além de mim

Em sua atmosfera, Solo faz jus ao nome. Não há ninguém ao seu lado, apenas o eco ou fantasma do amor que você escolheu no início. Algo de ruim aconteceu entre os dois e agora você vaga nessa espécie de sonho, dividindo o espaço com criaturas que são até simpáticas, mas não são humanas e não afastam o sentimento de solidão.

Nesse sentido, a música entra como a ferramenta perfeita, acentuando a imensidão do mar que se estende até o horizonte, a tranquilidade do lugar, mas, acima de tudo, o vazio do amor desaparecido. A trilha relaxa os sentidos, mas também anestesia. Sua repetitividade chega a enervar depois de uma sessão muito longa, e o que era algo solitário vai gradualmente se tornando desesperador e, em alguns momentos, cheguei a abaixar o volume da música, algo que raramente faço em jogos eletrônicos. Isso apenas para restaurar a música logo depois, porque o silêncio se provou mais angustiante que as músicas.

Solo também introduz um simplificado e gostoso sistema de tocar músicas no seu violão. Obedecendo comandos na tela, é apenas uma questão de jeito para pegar o ritmo e passar a executar variações do tema principal. A música pode ter efeitos positivos nos habitantes das ilhas.

Solo 05

As próprias ilhas são um convite à tranquilidade, com cenários magníficos de cores estouradas, que lembram um pouco as aventuras marítimas de um certo elfo em um outro jogo do passado. Completando algumas tarefas opcionais, é possível tornar ainda mais exuberantes determinados pontos do cenário e levar a felicidade aos nativos. Podemos dizer, na verdade, que Solo acaba sendo um jogo tão belo que chega a causar dor. O contraste com o óbvio desamparo de seu (sua) protagonista é gritante.

Mais solidão aqui do que qualquer homem poderia suportar

Solo, é claro, não traz as respostas para as perguntas que formula. Essas competem ao jogador. A Team Gotham somente oferece um espaço para reflexão e solta os pontos de interrogação no ar.

Infelizmente, a mesma desenvolvedora cai na clássica obrigatoriedade de tornar seu jogo… um jogo. Se sua temática é ambiciosa, a execução nem tanto. O jogador se vê obrigado a resolver problemas de puzzles envolvendo caixas e manipulação de objetos que em uma hora são simples demais, em outra hora são cansativos para cumprir, isso quando não são incompreensíveis. O efeito obtido acaba sendo afastar o jogador exatamente daquilo que se pretende descobrir. Afinal, porque estou brincando com caixas e desbloqueios se o objetivo final é o amor? A metáfora e o clima onírico desmoronam diante de uma jogabilidade desconectada.

Solo 14

Para complicar o esquema enfadonho dos puzzles, a câmera super sensível não ajuda nem um pouco. Muitas vezes me vi obrigado a largar o objeto que estava segurando apenas para reajustar a câmera e pegar o objeto novamente. Nisso se vão a paciência e a imersão, elementos fundamentais para embarcar nessa odisseia introspectiva. Um reajuste no menu e a câmera fica lenta demais e aparentemente não há meio termo. Isso quando não acontecem travamentos e fechamentos inesperados do jogo.

Solo se pretende um poema, uma roda de debates, talvez um espelho para cada jogador que já amou ou sonha em amar. Termina afogado em suas pretensões, entregando um jogo de puzzle ineficaz que lança perguntas profundas demais para uma jogabilidade tão rasa.

Ouvindo: REM - I Don't Sleep, I Dream

3 comentários:

disse...

Mais frequentemente sim do que não, eu tenho a sensação de que as desenvolvedoras de jogos tentam fazer uma coisa para a qual videogames não foram projetados para fazer. Eles tentam dar profundidade e colocar questões existenciais em um brinquedo.

Isso não quer dizer que não dá para fazer, claro que já foi feito algumas vezes(nem tantas assim), apenas que parece que eles estão se esforçando em nadar contra a correnteza com as ferramentas erradas.

Eu tive uma sensação parecida com a do seu texto jogando "A Night in the Woods", que a minha sensaçao foi "sim, é legal, mas seria tão melhor se NÃO fosse um jogo!"

Rabisco Virtual disse...

"as desenvolvedoras de jogos tentam fazer uma coisa para a qual videogames não foram projetados para fazer. Eles tentam dar profundidade e colocar questões existenciais em um brinquedo".

Eu penso que os jogos alcançaram novas possibilidades e podem sim ser uma experiencia de profundidade, tal qual as ramificações presentes no cinema e na literatura. Se a experiência fala ao âmago do jogador, talvez seja mais arte do que brinquedo. Porém os dilemas são muitos, e é necessário reavaliar até a própria nomenclatura do termo. A palavra "Jogo" remete ao conceito de desafio baseado em regras, e isso pode ir na contramão da proposta de títulos que buscam a imersão de uma "poesia, ou pintura interativa".

O cerne da questão é como criar uma interação orgânica e manter o envolvimento do jogador/espectador. Vejo o título Heavy Rain, da Quantic Dream, como uma experiencia positiva neste sentido, onde os mecanismos de interação são intrínsecos a narrativa de forma ímpar (com exceção de apenas uma cena de tiroteio, que destoa por limitações técnicas).

Talvez a Team Gotham tenha errado nas medidas da receita, talvez os puzzles não devessem existis nesse jogo, talvez a coordenação das emoções do jogador diante de uma experiência contemplativa seja o único, e melhor, quebra-cabeça para Solo. Apenas um talvez.

disse...

Heavy Rain mais ilustra o meu ponto do que o contrário, na verdade. Todos os elementos que diminuem a experiencia do jogo são justamente aqueles que o fazem ser um "jogo", e os criadores tem sucesso quando estão explorando elementos que não parecem videogame.

Foi isso que eu quis dizer: os desenvolvedores tem que pensar fora da curva, tem que lutar contra o sistema para fazerem videojogos serem uma ferramenta emotiva. Esse não é o estado natural deles - o que não é o mesmo que dizer que não possa ser feito.

E isso tem haver com o proprio conceitos que fazem jogos serem jogos

Imagino, por exemplo, que todos possam concordar que “À Espera de um Milagre” é um filme triste. Agora imagine o quão triste ele seria se, entre uma cena e outra, o protagonista que eu esqueci o nome mandasse ver no kung fu, disparasse alguns misseis e desse uns pegas voluptuosos por aí. Bem menos, eu suponho.

Videogames são mídias interativas, essa é meio que a coisa deles. E isso envolve, por parte do jogador, pensamento crítico e rápido, seja para resolver puzzles, seja para comandar o seu bonequinho na tela. Só que o pensamento lógico e a emoção são coordenados por áreas diferentes do nosso cérebro, e o hardware que carregamos não é tão otimizado assim para alterar entre uma e outra desta forma.

Por mais que você se emocione ouvindo sua sinfonia favorita, é pouco provável que isso aconteça menos de um minuto depois de você correr por sua vida de uma invasão alienígena, ou calcular o logaritmo da matriz de X. Não é assim que o cérebro funciona.

Não por acaso, os jogos que têm mais sucesso nessa conexão são aqueles de ritmo mais lento, mais parados, mais tranquilos, só que você tem que quebrar a cabeça para tirar um jogo disso. Normalmente os que conseguem faze-lo são uma experiencia única - como Shadow of the Colossus - e meio que soam como a exceção que comprova a regra, para mim.

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