Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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16 de setembro de 2015

Jogando: Papo & Yo

Recentemente, saiu um artigo no The Guardian sugerindo que o problema da diversidade de gênero, raça etc. nos jogos advém da falta de diversidade de uma forma geral na indústria dos jogos eletrônicos. Que os jogos modernos estariam obcecados com armas, matanças, pontuação, estatísticas e não haveria uma diversidade de experiências disponível.

Não poderia discordar mais.

Nos últimos meses explorei (sem combates) uma metrópole semi-submersa em um poético jogo sem falas. Fui dois irmãos em uma jornada (quase sem combates) por uma terra mágica. Fiz um pacto sombrio que me obrigou a confrontar meus próprios valores morais. Entrei em uma viagem misteriosa pelos porões da culpa.

E joguei Papo & Yo.

Papo & Yo 21

Não foi uma meta a ser alcançada, um "mês dos jogos deprê" ou algo assim. Submerged saiu no começo do "ciclo" e a desenvolvedora teve a delicadeza de atender meu pedido por uma cópia. Brothers - A Tale of Two Sons estava na minha lista de 2014 desde Janeiro do ano passado. Soul Gambler foi escolhido literalmente por processos randômicos da minha lista do Steam (uma nova mania...). Papo & Yo foi outro da minha lista de 2014. Ou seja, mesmo sem ativamente buscar por um caminho alternativo, esbarrei em quatro títulos que fogem e fogem muito do convencional "mata-mata" tão criticado no artigo do The Guardian.

A indústria está madura, diversa, abrangente. Se você quiser ignorar completamente os AAA arrasa-quarteirão, você tem jogos para todo o ano. Se você quiser ignorar completamente a cena independente, também tem opção. Se você quiser mesclar, e é o que eu tento fazer, por que não?

Realismo Fantástico

Em Papo & Yo somos apresentados a dois mundos que nunca vi antes em jogos eletrônicos. De um lado temos a dura realidade das favelas, com seus casebres empilhados, seu esgoto exposto, seus dramas, um protagonista criança e negro. Do outro lado, temos esse mesmo universo reformado com um olhar lúdico que apenas a imaginação seria capaz de conceber. Foram dois mundos que gostei de verem representados em meu monitor. Aquelas construções, os grafites, conheci de perto, do lado da minha casa, ainda que não tenham sido minha infância.

Papo & Yo 01

Apenas por essa representação, o primeiro título da autoral Minority Media já merecia destaque. Por seu aspecto interativo e tridimensional, os jogos eletrônicos permitem um grau de imersão e, consequentemente, empatia que poucas mídias conseguem (talvez a infinita liberdade da literatura e das imagens mentais que você mesmo conjura). Aqui, você se coloca no lugar do outro em um ambiente esquecido da sociedade.

Mas Papo & Yo vai além ao executar alterações nesse cenário que brincam com nossos conceitos de cenários em mundos virtuais. Nada é o que parece ser e nada é o que pode ser. Quico, nosso protagonista, viaja por uma versão Alice no País das Maravilhas desta favela, alterada pelos riscos da mente em sua busca por uma fuga da realidade. Outra comparação aceitável seria com o filme O Labirinto do Fauno, em que outra criança também se refugia dos horrores da vida cotidiana em uma realidade paralela sedutora, mas igualmente perigosa.

Papo & Yo 09Papo & Yo 27

Você vaga por esta favela onírica em busca de um novo deslumbre, uma nova maneira jamais vista de superar seus obstáculos. A própria perspectiva se torna um brinquedo nas mãos da história e o resultado final é puro encanto.

Entretanto, Papo & Yo não é um jogo feliz. Por trás deste universo lírico se esconde um horror extremamente cruel e real. Não apenas real no sentido do mundo real que transparece no jogo, mas real no sentido que infelizmente ocorre e ocorre com muita frequência no nosso mundo real. Não sei se ainda existe alguém que tenha ouvido falar do jogo e não sabe sobre seu tema principal, mas, na dúvida não irei mencioná-lo. Prepare-se para o impacto emocional.

Papo & Yo 17

O verdadeiro protagonista do jogo é o Monstro. Uma criatura que você não controla, mas depende dela. Uma criatura que não controla nem a si mesma e pode virar, de repente, seu único inimigo dentro do jogo. Com sentimentos ambíguos em relação a ele, você traça uma jornada procurando entender o que é o Monstro e como lidar com ele. As respostas são todas amargas. É um dos raros personagens de jogos eletrônicos que você sai da história incerto sobre como proceder. Pena, afeto, medo, ódio? Tudo isso?

Papo & Yo 13

Usando de poesia, uma jogabilidade deliciosa e uma trilha sonora arrebatadora, Papo & Yo consegue abordar um assunto pesado e sem soluções fáceis.

E ainda reclamam da falta de diversidade temática nos jogos eletrônicos. Pois reclamam de boca cheia.

Ouvindo: Walter Horton - Good Moanin' Blues

4 comentários:

Gledson A. disse...

Nunca tive estes problemas na minha família mas, pela primeira vez, graças a Minority, tive a oportunidade de provar este amargo fel que arrebata tantas famílias.

Maldito ópio destes tempos. Maldito seja!

Engraçado, lendo este texto tive a vontade de ouvir a trilha sonora novamente... ainda choro ao ouvir a trilha do final. Para aqueles que não jogaram e estão interessados em ter esta experiência por si mesmos, por favor, não ouçam a OST ainda. O título de cada trilha oferece um pouco de spoilers sobre o enredo.

Porém, para aqueles que já jogaram, só tenho isto a compartilhar: http://www.youtube.com/watch?v=38udbIqG0LQ



Fun fact: quando terminei de jogar Papo & Yo fui correndo para o Community Hub do jogo para compartilhar algumas teorias. O resultado está aqui (http://steamcommunity.com/app/227080/discussions/0/828936718797549690/). Os desenvolvedores acompanharam a discussão, incentivando-nos a continuar as teorias e opiniões. Sim, eles são demais.

BTW, falando em teorias, Aquino, qual a sua teoria sobre o final? Não tem problemas se estiver com receio de alguém ler os spoilers, entro em contato por Steam se necessário.

C. Aquino disse...

Liberado o SPOILER nos comentários. Não leia, se não jogou!

A minha teoria é de que Quico aprendeu a parar de se culpar pelos erros do "Monstro" e parar de acreditar que tem o poder de curá-lo. São duas cicatrizes emocionais que parentes de alcoólatras carregam, principalmente na infância. É o "deixar ir" que o "shaman" fala. Admitir que aquela criatura ora afável tem um problema intransponível e que apenas ela pode corrigi-la (ou não) e que ele deve seguir sua vida ciente desta dura realidade.

O mais doloroso é saber que mesmo depois dessa constatação, dessa "destruição" do Monstro, o pobre Quico está voltando para aquele armário do começo do jogo, desta vez sem máscaras ou fugas de imaginação para encarar seu pai de frente.

Se existe algum jogo que DEVERIA virar filme, é esse aqui. Os elementos estão todos presentes para um drama capaz de arrancar não o Oscar, mas prêmios em festivais alternativos.

Sobre Alejandra, a menina que acompanha Quico, eu diria que ela é uma representação de sua mãe ou irmã. Até porque ela aparece apanhando do pai em uma das estátuas no final. E uma das etapas da confrontação final é literalmente aceitar que o pai espanca ela com frequência.

É uma realidade terrível a retratada no jogo. Meu avô sofria desse mal e, segundo relatos da minha mãe, seu comportamento era bem esse. Ela, meus finados tio e avó carregaram traumas e histórias terríveis. De fugir de casa no meio da madrugada só com a roupa do corpo. Ironicamente, ou de acordo com a própria proposta do jogo, minhas memórias de meu avô são todas positivas: nesta etapa ele já era apenas uma visita e chegava em seu momento bom.

Gledson A. disse...

Possíveis spoilers abaixo, portanto não prossiga se não terminou o jogo.




Poxa, não sabia que tinha entes queridos que tinham passado por isso. Sinto muito; só consigo imaginar tal situação.

Este paradoxo humano é o que mais dói, eu acho. Sofrer nas mãos de quem você odeia é uma coisa, mas sofrer pelas mãos de quem você ama? Complicado.

[...]

Lendo sua teoria tudo começa a fazer sentido, principalmente a parte do final que, comparando com o que tu percebeu, corrobora com o título da trilha Liberation. Eu sempre tinha pensado que Quico tinha realmente assassinado o próprio pai, mas a alternativa de simplesmente aceitar o fato de que a salvação não provem dele faz mais sentido.

Alejanda foi um pouquinho difícil de entender por causa do beijo, como eu disse no Comunity Hub. Porém, parando para pensar, que mãe não beija o filho? Tinha me esquecido deste detalhe.

Porém ainda não consegui entender os flashbacks. Parece que eles fazem menção a um possível acidente de carro. Imagino se o final não é uma metáfora sobre isso.


Eder R. M. disse...

Concordo plenamente com o The Guardian e discordo da sua visão "enfeitada" da realidade, Aquino. Para cada Papo & Yo há dezenas de "Call of Duty" e similares. Para cada Brothers, há dúzias de jogos de temática com zumbis. Podemos facilmente apontar algumas felizes exceções, mas, encarando a realidade vemos que a diversidade de temas no jogos AAA é mínima. Tiros e guerras povoam o universo gamer e não vejo sinal de que isso mude, afinal, parece que o público também se satisfaz com um cardápio tão reduzido.

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Blog criado e mantido por C. Aquino

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