Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
Comunidade do SteamMastodonCanal no YouTubeInstagram

10 de junho de 2015

Arma Número Um

Faca - PripyatEm Call of Pripyat, há uma ampla e quase esotérica seleção de armas à sua disposição. Para quem cresceu acostumado com M-16s e AKs em dezenas de jogos, é estranho ver a quantidade de armas ucranianas exóticas.

Apesar da abundância, a arma que ocupa o número 1 no teclado é uma faca. Não há outras opções de faca no jogo. Nunca usei a faca no jogo. Então, qual é o sentido ali?

É uma longa tradição de FPS de colocar na primeira posição uma arma que você possa utilizar sem se preocupar com munição, supostamente para os momentos difíceis ou para os oponentes muito fracos. Também é uma tradição que uma nova arma seja oferecida logo nos primeiros minutos de jogabilidade e raramente você retornava àquela alternativa.

Nos anos 90 e começo dos anos 00, não havia FPS que não seguisse essa regra silenciosa. Muitos por pura preguiça de subverter as convenções. Os melhores jogos incorporavam essa mecânica em sua personalidade.

Afinal, o pé de cabra se tornou o ícone de um certo Gordon Freeman. Mas, você já parou para pensar porque esse entre tantos instrumentos. Porque Half-Life é sobre o homem certo na hora certa, o cidadão comum transformado pelo destino em um instrumento da resistência. Sua arma número 1 é uma ferramenta, algo que até então não era associado ao combate. Assim como o cientista que se torna herói, sua arma característica é improvisada.

Gordon Freeman

O que uma motosserra está fazendo em Marte? Ninguém questiona, porque a motosserra se torna aí um símbolo da brutalidade presente em Doom, tão reconhecível que é responsável pelo clímax do único bom momento da espúria adaptação cinematográfica. Uma arma tão agressiva não poderia ficar limitada a uma única série e faria seu retorno como o cartão de visitas da franquia Gears of War, mesmo não sendo um FPS.

A trinca de ouro da engine Build também demonstra o cuidado que os pioneiros dos FPS tinham em diferenciar suas criações umas das outras. O macabro Blood traz o protagonista carregando um forcado, normalmente associado ao "satanismo" como arma primária. Seu alcance, um pouco maior que a média das armas de combate corporal que utilizam o botão 1, a torna útil até o final do jogo para afastar zumbis e arrancar suas cabeças. Já Shadow Warrior, que puxa suas inspirações dos clichês de filmes de kung-fu, não se decide e oferece duas opções para o botão 1: uma Katana capaz de cortar ao meio o vilão básico do jogo e o bom e velho golpe dos punhos de dragão que um artista marcial do porte de Lo Wang seria capaz de conhecer. Fechando a trinca, Duke Nukem 3D tem um personagem principal cujo lema é literalmente "chutar bundas" e cujo ataque primário é... uma botinada bem dada nas fuças.

katana

Originalmente, Quake traria um poderoso Martelo encantado como arma número 1, capaz de sacudir o chão e que seria a explicação para o título do jogo. Mas John Carmack achou que esta era outra ideia de John Romero que não valeria a pena seguir, acentuando o conflito entre os dois fundadores da id Software. O overpowered martelo foi substituído por uma insossa e mal-renderizada pá suja de sangue, mas Quake seguiu para se tornar um clássico focado na mecânica de tiros.

Em contrapartida, após sair da id Software, Romero insistiria no plano de ter um jogo com uma arma branca como centro da jogabilidade e conceberia o polêmico, para não dizer rejeitado, Daikatana. A decisão de tornar a espada como ponto central acabou se tornando um, entre vários, equívocos da produção do FPS.

Mas o gênero dos FPS sofreria uma mutação com o novo milênio e partidas multiplayer passaram a dominar o cenário. A arma primária foi uniformizada na forma da onipresente faca, praticamente inútil. Entretanto, jogadores habilidosos se especializaram no seu uso e a arma número 1 se tornou um instrumento de humilhação, como se diz no jargão, "só na faquinha". Em partidas frenéticas, onde precisão e correria são constantes, a arte se esgueirar e tirar todos os pontos de vida de um oponente usando a arma mais fraca do jogo conquistou um status infame.

CS - Na Faquinha

Dead Island, de certa forma, colocaria as armas brancas finalmente no patamar que merecem, com resultados que se encaixam como uma luva na atmosfera sangrenta de sua trama. Ainda que armas de fogo possam ser encontradas e utilizadas, são machados, marretas, facões e outros instrumentos customizáveis que se tornam o principal método de cortar e mutilar a horda de mortos-vivos. O sentido de improvisação que antes havia em Half-Life aqui ocupa o centro do palco: o apocalipse zumbi aconteceu e você está usando tudo que encontra contra os monstros. A própria Valve também adotaria o conceito anos antes com Left 4 Dead 2, onde é possível até mesmo usar uma guitarra ou uma frigideira para se defender dos zumbis.

Nos confins do espaço ou nas ruas de qualquer cidade, a verdade é que a arma número 1 continuará sendo a companheira inseparável dos jogadores de FPS. Ainda que não necessariamente a mais utilizada.

Ouvindo: Danzig - Cult Without A Name

3 comentários:

Luiz Antônio disse...

Importante lembrar que o pé de cabra também está presente no clássico Deus Ex que, se não me falha a memória, também é a "arma" da tecla 1. Fundamental para quem quer zerar o jogo em modo stealth e não letal.

Provavelmente os desenvolvedores de Deus Ex se inspiraram no 1º Half Life para incluir o pé de cabra como a 1ª "arma".

Marcos A. S. Almeida disse...

Em muitos FPS ela é frequentemente empunhada para andar mais rápido , como no Killing Floor e CS:GO. Em Half-Life eu tenho a impressão que o pé-de-cabra foi implementado, salvo informação contrária , por conta das caixas que frequentemente tinhamos que quebrar.Talvez com uma faca isso ficasse menos plausível e ainda complicaria por conta do menor alcance dela.

Michael Andrade disse...

Nunca havia refletido sobre as armas "número 1".
Ótimo texto, como sempre!

Um forte abraço!

Retina Desgastada

Blog criado e mantido por C. Aquino

Wall of Insanity