Retina Desgastada
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21 de maio de 2015

Ellen e John

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Quem vê o simpático casal de idosos da foto talvez não suspeite que os idolatra. Ambos com 62 anos, dos quais 28 são de matrimônio, a dupla está presente no coração de muitos jogadores.

Mas, como toda boa história, nem sempre foi assim.

Turnê Europeia

Ele começou sua carreira como músico de jazz. Percebeu que precisava mudar de área quando tocava com a banda responsável pela trilha sonora de um musical da Broadway em turnê pela Europa. Percebeu que os atores no palco recebiam um salário substancialmente maior do que o dele, que ficava escondido no fosso. Se candidatou a ser o substituto de um dos atores de um papel menor e foi aceito. Na Itália, sentiu o gosto da atuação pela primeira vez e nunca mais largou, ainda que seu lado músico não tenha sido esquecido jamais.

Ela começou diva. No musical da Broadway em que ele entrou pela porta dos fundos, ela era a protagonista. Treinada no Conservatório da Nova Inglaterra em Boston para ser uma cantora lírica, escolheu o teatro como sustento.

Em 1984, se encantou por aquele sujeito que tocava banjo no fosso da orquestra e que desejava um papel no palco porque estava sem dinheiro. Ela ganhava o triplo do salário dele e bancou a paixão instantânea que os consumiu. Ele não tinha grana nem mesmo para comprar um casaco decente ou um sapato quente, enquanto o frio europeu castigava seu corpo. Ela trocou seu guarda-roupa, abriu as portas do seu quarto de hotel.

Havia um porém: ambos estavam comprometidos com outras pessoas. Ambos eram noivos.

Ao voltarem aos Estados Unidos, fizeram a coisa certa: romperam seus relacionamentos anteriores e passaram a viver juntos. "Ninguém ficou realmente feliz a respeito, porque eu acho que tanto eu como ele realmente amávamos nossos noivos. Mas não como nos amávamos um ao outro", explica ela, com toda a simplicidade e sinceridade possível.

Daquele dia em diante, Ellen McLain e John Patrick Lowrie nunca mais se separariam.

"Still Alive"

Sniper e GLaDOS

Ellen McLain se tornou imensamente popular ao emprestar seu talento de dubladora para dar vida, quase no sentido literal, a GLaDOS. John Patrick Lowrie talvez não seja tão conhecido mas sua voz também faz parte da família da Valve: ele dubla o Sniper, de Team Fortress 2 além de sete personagens em Dota 2, incluindo o monstro açougueiro Pudge.

A dupla foi entrevistada por Jaggner Gravning para o site Motherboard e revelou detalhes de sua história. Por exemplo, houve tempos difíceis para estes dois talentos. Longe de Nova York, por causa da violência urbana, não desejando se separar em turnês longas, o casal chegou a embalar ovas de peixe em um fábrica de caviar para pagar as contas.

"Nós vestíamos botas de borracha", contou Ellen. "Os mais treinados estavam embalando os ovos bons de peixe para o mercado japonês consumir. Nós estávamos embalando ovas de peixe para isca, porque não levávamos muito jeito".

Felizmente, o período sombrio durou pouco tempo e logo eles estavam de volta aos palcos. Atualmente, apesar da fama, o casal vive mesmo do teatro ou comerciais de TV.

"Adeus, filho"

O envolvimento com o mundo dos jogos veio através de John. Ele é o jogador da casa, embora se defina como casual e seus títulos favoritos sejam experiências mais tranquilas como Myst ou Civilization. Ironicamente, Ellen nunca jogou um título da franquia Portal. Afirma que tentou, mas não se deu bem com os controles. "Eu vejo o John jogando", confessa.

John estava envolvido com a dublagem de jogos desde os anos 90. Ele lembra que naqueles primeiros anos ninguém sabia o que fazer com um ator no estúdio de dublagem. Em várias sessões, havia apenas uma sucessão de linhas escritas no papel que ele tinha que falar. Não havia contexto, motivação, explicação alguma. Ele perguntava para os técnicos, querendo saber mais detalhes, e ninguém sabia ao certo. O responsável pela história nem mesmo comparecia às gravações e tinha que ser chamado ao telefone.

Em uma das sessões, ele precisava dizer a frase "Adeus, filho". E era tudo o que ele sabia sobre o contexto. Inconformado, pediu mais dados para poder fazer sua dublagem. Após uma confusa conversa entre os desenvolvedores e o escritor ao telefone, a resposta foi: "Olha, aqui é onde o jogo se bifurca. Seu filho tanto pode descer, pegar algum pão e voltar ou pode atravessar esse portal do tempo, ir para outro universo e você nunca mais irá vê-lo novamente. Então, será que você podia falar a frase de um jeito que servisse para os dois casos?".

Com o tempo e a interação entre desenvolvedores e atores, ficou clara a necessidade de se orientar os dubladores para um trabalho melhor. O resultado foram interpretações melhores e até histórias melhores.

Quando Ellen McLain foi convidada para entrar no estúdio da Valve pela primeira vez, já havia esse ajuste fino entre dubladores e contadores de história. O que ela faria ali dentro, entretanto, elevaria essa química a um novo patamar.

GLaDOS Nasce

Inicialmente, não haveria Ellen McLain nenhuma em Portal. A inteligência artificial insana que persegue, tortura, ironiza e acompanha o jogador teria sua voz gerada por um programa que transforma texto em voz, uma origem apropriada para o personagem. Entretanto, a Valve esbarrou em um problema de licenciamento. Utilizando o programa, teriam que pagar uma porcentagem do faturamento do jogo aos criadores do software. A solução mais barata encontrada foi contratar uma pessoa que pudesse simular uma voz automatizada de um programa que converte texto em voz.

EllenEllen foi a escolha mais óbvia. Ela já havia trabalhado em Half-Life 2, ainda que de forma mais discreta, emprestando sua voz para as mensagens do sistema de anúncios públicos do Overwatch. Seu marido circulava pelos corredores, fazendo outros trabalhos para a Valve. Não houve dúvidas, Ellen imitaria o sintetizador de voz.

Mas quis o destino que ela fosse uma atriz de teatro com décadas de experiência. Ela foi além do exigido. Entrando na mente de GLaDOS como ninguém havia pensado em fazer ainda, ela injetou personalidade onde antes só havia mecânica. Sua interpretação ficou tão impressionante que os roteiristas mudaram tudo. Os puzzles já estavam prontos, a jogabilidade também. Mas o enredo, esse não teria saído como saiu sem a ajuda de Ellen. O sarcasmo, a relação entre a antagonista e a heroína, a latente insanidade da inteligência artificial, tudo isso foi contribuição dela ou inspirado por sua interpretação.

Erik Wolpaw, um dos autores da história, admite que eles não tinham o último terço da história pronta e não sabiam para onde ir. Tudo mudou com a chegada de Ellen. O final musical foi um salto de fé da Valve: mesmo sem tê-la ouvido cantar, eles sabiam que ela seria capaz de entregar "Still Alive".

Seu papel foi tão influente que o desenvolvimento de Portal 2 foi concomitante à dublagem. Programadores e designers se recusaram a produzir o jogo usando vozes substitutas ou com lacunas, Ellen precisou estar presente para a história e os enigmas avançarem juntos. O programa de conversão de texto para voz foi definitivamente aposentado. Ellen era GLaDOS.

Canção Para a Máquina

Atualmente, John faz comerciais, teatro e trabalhos de dublagem para Valve que ele não pode comentar. Ellen atua em um papel coadjuvante em uma montagem de Mary Poppins, dá aulas de interpretação de voz para jovens, leciona no Seattle Opera Guild e canta no coral da sua igreja todas os Domingos.

Em convenções, ela e seu marido são conhecidos por assinar autógrafos por horas seguidas, em filas que nunca terminam. Tampouco se recusa a dar uma canja de "Still Alive" ou "Want You Gone", acompanhada pelo inseparável banjo de John.

Ellen and John - Ao Vivo

Mas esse vínculo se faz ainda mais presente quando ela abre o coração para o entrevistador e admite que é uma artista interpretativa, que ela não cria coisas, apenas as interpreta. Com uma única exceção. Uma música, que ela mesma compôs e escreveu. Para GLaDOS.

A música veio à sua mente durante um banho de banheira e foi concluída durante uma caminhada. Seu marido completou o arranjo para violão e brotou "GLaDOS’ Song". A canção foi gravada na sala de estar da própria casa do casal e oferecida para a Valve como um easter egg para Portal 2. Por algum motivo que jamais saberemos, a música não entrou no jogo. Por anos, permaneceu esquecida, ouvida apenas pelos amigos mais próximos.

Gravning da Motherboard teve a ousadia de pedir a música para sua matéria. Ellen pediu desculpas pela má-qualidade da gravação. O assunto poderia ter terminado aí, mas o casal então regravou a canção em um estúdio profissional e colocou no YouTube:

Com uma carreira tão extensa, ela não se arrepende ser marcada como GLaDOS. "Eu poderia fazer GLaDOS para sempre".

Ouvindo: Eyedea and Abilities - Now

4 comentários:

Tais disse...

ow, quase lacrimejei aqui. mentira, tô lacrimejando de verdade. muito foda essa história, e muito foda o teu texto, Aquino. textos assim valorizam DEMAIS o teu blog.

Anônimo disse...

assuntos assim, só aqui.

Anônimo disse...

Não conhecia o blog e já dei de cara com esse artigo. Que tapa na cara! Mas um tapa de carinho, hehe. Sério, belíssimo texto.

LocoRoco disse...

Que matéria boa. Parabéns Aquino!

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Blog criado e mantido por C. Aquino

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