Salman Rushdie é mais famoso por ter escrito o livro Versos Satânicos e ter sua cabeça literalmente colocada a prêmio por radicais islâmicos. Mas o autor britânico de origem indiana está menos preocupado com política do Oriente Médio e intrigas teológicas do que com a ficção, sendo um dos praticantes do que se convencionou chamar de realismo fantástico, o encontro entre o mundo mágico e o mundo real.
Não por acaso, Luka and the Fire of Life vem acompanhado de uma recomendação do autor de quadrinhos compatriota Neil Gaiman. Se você conhece a obra do homem que recriou Sandman na DC Comics, você já está familiarizado com o trabalho de Rushdie aqui: uma jornada épica por terras estranhas, com coadjuvantes oníricas, um clima de conto de fadas, tudo isso encobrindo um tema sério e adulto, como a Morte.
Este livro de Rushdie ganhou um pouco de holofote fora dos círculos da alta literatura, por assim dizer, por supostamente trazer elementos do mundo dos jogos eletrônicos para o universo do realismo fantástico. Rushdie escreveu o livro dedicado para o seu filho de 13 anos, que, como todo moleque nessa idade e nessa geração, é fã de Mario e outros ícones da jogatina.
Entretanto, estes mesmos elementos fora do seu contexto parecem ser utilizados com pouco jeito por Rushdie, claramente um forasteiro no meio. O protagonista Luka usa save points em sua jornada, tem um mostrador de vidas no canto de sua visão, mas é só isso. Nenhuma das duas concessões a esta "modernidade" tem qualquer influência concreta no desenrolar da história e Rushdie obviamente não entendeu como o conceito de "vidas" funciona, uma vez que Luka costuma perder dezenas com um único golpe. Em dado momento, os mundos de cada jogo são referenciados como existindo com a mesma força que o mundo real ou o mundo mágico das histórias literárias, mas é uma passagem rápida, que nunca é explorada.
Rushdie brilha de verdade quando não está tentando pateticamente falar a linguagem dos jovens digitais e prova, com absoluto domínio, que uma história não precisa de truques baratos para se mostrar atemporal e capaz de cativar aquela mesma juventude que ele está mirando. Por que Luka and the Fire of Life é uma montanha-russa de encantamento, dotada de uma prosa deliciosa.
Na trama, Luka, filho de um contador de histórias, se associa a um urso chamado Dog e um cachorro chamado Bear para entrar no Mundo Mágico e roubar o Fogo da Vida para restaurar a saúde do seu pai, vítima de uma misteriosa doença. Qualquer semelhança com o mote de Mirrormask, escrito por Neil Gaiman, é apenas fruto do acaso de mentes geniais repensando temas ancestrais.
É um roubo definido como impossível desde o começo, mas com a ajuda dos mais inusitados aliados e figuras mitológicas de diversas culturas, Luka irá tentar.
O livro é a continuação de Haroun and the Sea of Stories, protagonizado pelo irmão mais velho de Luka, mas não é necessário ter lido o livro anterior para embarcar de cabeça nesta nova aventura. Foi traduzido para o português como Luca e o Fogo da Vida e publicado pela Companhia das Letras, mas não sei como está sua disponibilidade no Brasil atualmente.
Sem cair no hermetismo que ocasionalmente assola o próprio Neil Gaiman, Rushdie constrói um road movie fantástico com suas próprias regras, fácil de acompanhar e que funciona como uma celebração da própria arte de imaginar.
4 comentários:
Fiquei curioso, mas vou esperar terminar de ler o Game of Thrones.
Já havia lido e curti, tanto que tive o trabalho (e que trabalho!) de encontrar o livro anterior, que, aliás, achei mais bem escrito. E concordo com você, no que se refere a jogos eletrônicos, o livro é bem fraco. MAS isso não tira nem um pouco de seu mérito. A estória é uma viagem surreal, em que você se sente íntimo de cada um dos personagens, mesmo que todos sejam tratados superficialmente. Reforço a recomendação: quem puder ler, leia!
Já havia lido e curti, tanto que tive o trabalho (e que trabalho!) de encontrar o livro anterior, que, aliás, achei mais bem escrito. E concordo com você, no que se refere a jogos eletrônicos, o livro é bem fraco. MAS isso não tira nem um pouco de seu mérito. A estória é uma viagem surreal, em que você se sente íntimo de cada um dos personagens, mesmo que todos sejam tratados superficialmente. Reforço a recomendação: quem puder ler, leia!
nota mental feita para quando for à livraria da próxima vez.
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