Meu nome é Carlos Aquino e sou um pirata. Eu pirateio filmes, músicas, programas, e-books e, até uns três anos atrás, jogos. Se existe em forma digital, eu já baixei. Não tenho a pretensão de justificar o que faço. Não vou me esconder atrás de discursos contra o sistema capitalista ou a liberdade de informação. Não vou argumentar contra o valor dos produtos de consumo ou o baixo poder aquisitivo médio da população de meu país. Tampouco vou me vangloriar, dizer que sou "mais esperto", que conheço o submundo ou tirar onda de malandro. Sou pirata porque posso, porque é o que eu sou há mais de 25 anos.
Corsário Analógico
Tudo começou com um rádio com toca-fitas usado dado pelos meus pais para ouvir música. A combinação de FM com o botão REC de um gravador de fitas K7 se mostrou marcante. Só quem viveu os anos 80 se lembra do único procedimento gratuito para ter acesso às suas músicas favoritas: escutar o rádio o dia inteiro com uma fita virgem na posição certa. Ao primeiro acorde de uma canção desejada, você voava do outro lado do quarto e apertava o REC como se sua vida dependesse daquele gesto, com a fúria de quem aperta o botão que interrompe a contagem regressiva de uma bomba. Frequentemente, isso significava perder alguns segundos do início da música, gravar vinhetas de rádio ou amaldiçoar o locutor que teimava em falar no final, por cima daquele encerramento da música que você tanto gostava. Mas era o único procedimento. Em pouco tempo, eu tinha dezenas de fitas, com ritmos misturados, épocas misturadas, qualidade misturada.
Perplexos com a paixão com a qual eu tinha abraçado o mundo da música, meus pais depois me deram um microsystem novinho, com duplo deck, um autêntico ghetto blaster vulgarmente popularizado nos subúrbios americanos. Para quem reclama dos celulares que tocam música alta dentro dos ônibus, vale lembrar que houve um tempo em que os mal-educados andavam com um aparelho do tamanho de uma mala pequena e dois alto-falantes no último volume. É um problema antigo.
Meu ghetto blaster nunca foi para as ruas, mas serviu para eu me "profissionalizar" no ato de compilar músicas. Com dois tape decks, eu comecei a separar as canções por gênero ou artista. E passei a etiquetá-las. Ninguém nunca me disse que era errado gravar músicas do rádio, muito pelo contrário. Meu novo equipamento conseguia inclusive captar o som das emissoras de TV e logo eu estava também copiando músicas de créditos de filmes e videoclipes.
Música ocupava, e ainda ocupa, a totalidade do meu tempo. Se estava lendo, eu estava ouvindo música. Se estava estudando, eu estava ouvindo música. Se eu não estava fazendo nada, eu estava ouvindo música. Quando não ouvia minhas próprias fitas, eu espreitava as ondas FM, sempre com uma fita vazia no deck.
Na mesma época me dei conta que poderia gravar o conteúdo de discos de vinil para K7. Não apenas os escassos discos que já possuía ou a parte do acervo de meus pais que me interessava. Mas também os discos de meus amigos. Pior de tudo: eu não tinha um 3 em 1 em casa. Para quem só conhece iPods e Zunes, um 3 em 1 era um aparelho mágico que combinava vitrola, toca-fita e rádio em um único dispositivo. Para quem só conhece iPods e Zunes, vitrola era um equipamento que tocava discos. Para quem só conhece iPods e Zunes, disco era... ah, deixa pra lá. O importante é que eu não tinha condições de copiar discos em casa. Tornei-me um sociopata vil e interesseiro: ia na casa de meus amigos com duas ou três fitas, me alojava do lado da sua coleção de LPs e os copiava usando seu próprio equipamento. Nem todo mundo encarava essa pilhagem com a mesma boa-vontade. Em minha defesa, posso dizer que nunca fui indelicado de forma consciente. Eu era mais sem-noção do que abusado. Em minha lógica distorcida, eu imaginava que estava prestando um favor, realizando todo o trabalho de gravar os discos ao invés de deixar uma fita na casa deles e pedir que gravassem eles mesmos para mim (o que raramente faziam, porque é um processo muito chato).
Vale lembrar que se hoje você copia uma discografia inteira em questão de segundos de um HD para outro, antigamente você tinha que acertar o ponto certo da música no vinil, posicionar a agulha e escutar música INTEIRA enquanto ela ia gravando no K7. Uma música de cinco minutos levava cinco minutos para ser gravada.
Mas eu comprava minhas fitas e meus discos também. Com sofrimento e economias, eu prestigiava aqueles artistas que gostava mais ou me arriscava em busca de novas sonoridades. Minhas finanças não conseguiam acompanhar a necessidade desesperadora por mais músicas e para cada 20 fitas copiadas, uma era legítima.
Após muita insistência, meus pais compraram um 3 em 1 para mim, com as duas maiores caixas de som que já vi na vida. Nosso padrão de vida subia aos poucos, ao mesmo tempo em que eu descobria o mercado de discos usados. Meus amigos passaram a emprestar seus discos, talvez felizes que eu não iria mais alugar o aparelho deles e confiantes de que eu os devolveria. Sempre devolvi os LPs que pegava. Não havia sentido em mantê-los, não havia sentido em matar a confiança: o que eu queria, as músicas, ficavam comigo. Se eu tinha as músicas e meus amigos não as perdiam, como isso podia ser errado? Quem saía perdendo? Não pensava nos artistas ou no mercado. E ria da qualidade patética das fitas piratas vendidas em camelôs, com suas capas xerocadas. Minha coleção privada? Podia ser contada em centenas.
Corsário Anacrônico
Quando ganhei meu primeiro CD eu não tinha um aparelho que tocasse aquilo. Um tia minha, indo para o exterior, perguntou se eu queria alguma coisa. Pedi um CD dos Pixies, qualquer CD dos Pixies. Mais um anacronismo para quem nasceu depois: houve uma época em que a única forma de ter acesso a certos grupos e sons era saindo do país. Hoje, o Pixies vem fazer show em Curitiba. Pedi outros álbuns, mas minha tia só achou o dos Pixies: "Surfer Rosa". Fiquei olhando para aquilo por meses, sem ouvir. Um amigo meu tinha um aparelho de CD, mas eu já tinha passado da fase cara-de-pau. Esperei.
Meu primeiro aparelho com CD veio depois. O que eu vou dizer agora é um sacrilégio para qualquer amante de música. Porém, a verdade é que eu continuei meus hábitos: eu COPIAVA CDs para fitas K7.
Inicialmente, a mesma rotina: pedir CDs dos amigos, copiar. Logo, entrei em escala industrial ao descobrir uma loja perdida em uma galeria perto do trabalho do meu pai que alugava CDs. Era o equivalente a ter acesso imediato à chave dos portões do Paraíso. Semanalmente, eu alugava três, quatro álbuns. Religiosamente, durante meses. Meu acervo explodiu.
Já possuía um PC, mas não o via como fonte de música. Raros eram os sites de MP3, o formato ainda estava nascendo, e minha conexão discada fazia a entrada de novas músicas ser muito mais lenta do que os métodos aos quais estava acostumado. Ainda assim descobri o esquema de cabeamento necessário para jogar o som do computador para a entrada auxiliar do meu indefectível 3 em 1. E também fui apresentado ao mundo dos programas piratas e dos jogos abandonware de poucos KB.
Comprei meu primeiro jogo pirata através de um anúncio de jornal. Era Age of Empires, depois de semanas jogando incessantemente a versão demo. Acredite se quiser, mas fui pegar o CD do jogo com dinheiro na mão na saída de um metrô, com hora combinada. Pirataria era um negócio olho no olho naqueles tempos. Depois vieram Diablo, Close Combat, Max Payne e vários títulos comprados no camelô. Apenas as revistas de bancas de jornais me separavam da completa ilegalidade.
Na mesma época, entrei para o mercado de trabalho. Tive a sorte de sempre trabalhar em empresas que permitiam o uso do fone de ouvido (e a única que proibia só contou com minha presença por uma semana), então, meu hobby, meu vício, me acompanhava. Eu comprei um walkman, um transformador e levava toda esta parafernália mais algumas fitas para o escritório. Atuando em tecnologia, meus colegas de trabalho estranhavam aquele cara analógico. A idiossincrasia estava com seus dias contados, é claro. Com a compra de um gravador de CD e a certeza de que sempre teria uma máquina com drive de CD e saída de áudio, chegou a hora de aposentar o analógico.
Corsário Digital
O que fazer com minha coleção de fitas, que já chegava a 500 K7s? Copiar tudo para CD? Além de ser ilógico, levaria meses. Mas o dilema não iria me deter. Joguei 90% delas no lixo e recomecei do zero. Com meu próprio salário, com a consciência que a vida adulta deveria oferecer e um padrão de vida bem melhor do que a de um adolescente imberbe, tive a oportunidade de legalizar minha situação. E não o fiz. Aluguei CDs em um ritmo ainda maior, agora que o processo de ripagem era muito mais rápido do que a cópia minuto a minuto. Pedi emprestados de volta os CDs de meus amigos. Coloquei o computador para fazer downloads de madrugada, para aproveitar a tarifa zero.
Com a prática dos downloads, passei a procurar jogos full na internet. Baixei alguns vírus, alguns fake, fiquei esperto. Me tornei um craque na arte do crack.
Se a situação já estava fora de controle antes, alcançou proporções inimagináveis com duas reviravoltas tecnológicas: banda larga em minha casa e o Kazaa. Não consegui aproveitar a febre do Napster, mas o Kazaa trouxe discos inteiros para minha coleção com um simples clique. E jogos. E filmes. Em poucos meses, provavelmente meu acervo duplicou. Nem alugava mais álbuns musicais, nem de forma muito indireta a indústria estava vendo meu dinheiro.Do Kazaa fui para o Emule, dos CDs virgens para os DVDs virgens, dos jogos pequenos de algumas centenas de MB para titãs de vários GB que levavam semanas para serem baixados.
Passei a ser referência para meus amigos, que me pediam jogos, músicas e filmes. Neste momento, passei a perceber que estava no caminho errado, que tinha construído uma bagagem cultural baseada inteiramente no furto disfarçado do trabalho de outras pessoas. Pior, estava me tornando um atravessador. De graça, sem cobrar nada, mas ainda assim um atravessador.
Cheguei a um ponto em que tinha que estabelecer limites auto-impostos para a quantidade de jogos e álbuns que poderia baixar por mês. O espaço no HD passou a se tornar o obstáculo, o tempo para queimar DVDs se tornou uma obrigação. A lista de jogos para jogar, músicas para ouvir e filmes para ver se tornava maior do que a vida. Não lembrava mais a última vez em que entrara em uma loja de música.
Bandeira Baixa
O primeiro título que comprei no Steam foi Half-Life. Por um dólar. Uma promoção esperta da Valve que deve ter pego muita gente. Já havia jogado na versão pirata, de cabo a rabo, mas um dólar é um dólar. Um dólar pela minha consciência, era o que Gabe Newell e sua turma estavam oferecendo. E o jogo valia muito mais do que isso. Depois veio a promoção do Lost Planet. Depois outra. E mais outra. Pela primeira vez eu tinha velocidade plena de download, zero de trabalho em craquear, zero de vírus e uma sensação boa no fundo da cabeça.
A transição não foi imediata, é claro. A oferta de novos títulos era incessante, todos chegando simultaneamente ou até antes nos sites ilegais. Mas eu também percebia que estava baixando mais do que realmente jogando. Estava baixando ilegalmente títulos que não iria jogar ou que só iria jogar anos depois de seu lançamento, quando tivesse tempo e uma máquina capacitada. Então, eu estava baixando para quê?
Ao mesmo tempo, minha coleção de músicas ultrapassava a marca de 300 DVDs de MP3. É música para toda uma vida. Quando eu escuto uma faixa hoje, é certo que só voltarei ao seu DVD anos depois. Fui parando, não completamente, mas fui parando.
Quando comecei o blog estava ciente de que estava diante de uma contradição: enaltecer as qualidades do trabalho de desenvolvedores ao mesmo tempo em que não dava um centavo para eles. Quanto mais eu escrevia, mais amargo era o sabor. Títulos analisados por aqui foram baseados em sua versão pirata: S.T.A.L.K.E.R., Advent Rising, Painkiller (copiado para mim por outro "colecionador"), The Suffering, Duke Nukem 3D e outros. Tomei a decisão de parar. Mas foi difícil. Quando GTA IV foi lançado, disse para mim mesmo: "este será o último". E assim foi. Fiquei com a cópia do jogo gravada em um DVD de duas camadas, sem nunca abrir, até o dia em que consegui comprá-lo no Steam, finalmente liberado para nossa região. O DVD foi pro lixo.
De três anos para cá, venho legalizando meu acervo de jogos, comprando pela primeira vez títulos que me deram tanta alegria no passado. Age of Empires comprado em mídia física, com direito a Age of Kings e Age of Empires II no mesmo disco. Anachronox, na última caixa na Terra. Dead Space, via ShopTo. E, depois que um amigo da onça sumiu com meu DVD do Dead Space, comprei o jogo de novo no Steam. O caso mais emblemático talvez tenha sido o de Dark Messiah of Might and Magic. Mesmo não tendo gostado muito do jogo, um mês depois de tê-lo concluído, encomendei minha caixa no ShopTo. Entre Gamersgate, GOG, Steam, Nuuvem, Xogo e pechinchas em lojas físicas, vejo agora meu acervo crescer como deveria ser. Novamente, tenho mais jogos do que consigo jogar, mas agora eles são meus. Meus.
Faltava, porém, um último passo. Mesmo com uma coleção considerável de jogos legais, ainda tenho os antigos DVDs piratas. Muitos títulos inéditos, muitos títulos saudosos, muitos títulos que eu gostaria que meu filho conhecesse. Não mais. Estou me desfazendo deles. Se o jogo está à venda em algum lugar, a cópia pirata vai para o lixo. Dói na carne e vai me custar uma grana para recuperar. Mas não são meus. Eu os roubei.
Espero algum dia ter a mesma coragem para me livrar de todas essas músicas que vocês veem no final de cada postagem. É um hábito muito mais antigo, muito mais enraizado no meu cérebro. Por enquanto, me conformo com a redução drástica no ritmo de downloads.
Por enquanto, sigo pirata. Mas não de jogos.