Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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27 de outubro de 2012

Pacote de Doritos

"Jornalismo é publicar algo que alguém não queira que seja publicado. Todo o resto é relações públicas".  George Orwell

Combater o corporativismo é uma das tarefas mais complicadas em qualquer ambiente profissional. Policiais defendem policiais, professores defendem professores, políticos defendem políticos, advogados defendem advogados e jornalistas de jogos defendem jornalistas de jogos. Exceto Robert Florence, em sua última coluna para a Eurogamer. Em um momento que só pode ser descrito como uma mistura de total decepção e perda do medo de ficar desempregado, ele quebrou o silêncio. Transcrevo a coluna em sua íntegra, incluindo em negrito as partes que foram suprimidas à revelia pelo editor do site, depois que o caso atingiu o ventilador:

Há uma imagem circulando pela internet esta semana. É a imagem de Geoff Keighley, um jornalista de jogos canadense, sentado com olho de peixe morto ao lado de um pôster exuberante de Halo 4 e uma mesa de Mountain Dew e Doritos. É uma imagem trágica e vulgar. Mas eu acho que é mais importante imagem no jornalismo de jogos hoje. Eu acho que nós todos deveríamos vê-la e estudá-la. É importante.

Geoff Keighley e os Doritos

Geoff Keighley é frequentemente descrito como um líder na indústria. Um especialista em jogos. Ele é um dos mais proeminentes jornalistas de jogos no mundo. E ali está ele, sentado, ao lado de uma mesa de biscoitos. Ele ficará sentado ali eternamente, em nossas mentes. Isto é onde ele está agora. E em um certo sentido, é onde ele sempre esteve. Como Produtor Executivo do descerebrado, desastroso espetáculo que é o Spike TV Video Game Awards ele supervisiona a entrega de uma mesa televisual repleta de lixo, um festival completo de Doritos culturais.

Quantos jornalistas de jogos estão sentados ao lado daquela mesa?

Recentemente, o Games Media Awards aconteceu outra vez e jornalistas de jogos apareceram para a festa com seus amigos de Relações Públicas de jogos. O pessoal do RP de jogos e os jornalistas de jogos votaram em seus amigos favoritos, e amigos deram prêmios para amigos, e todo mundo teve uma noite e tanto. Eurogamer ganhou um prêmio. Kieron Gillen foi nomeado uma lenda da indústria (e se alguém é uma lenda em escrever sobre jogos, é ele) mas ele merece uma plataforma melhor para ser reconhecido do que estes GMAs. Os GMAs não deveriam existir. Por direito, aquela sala deveria estar cheia de pessoas que se sentem desconfortáveis na companhia uns dos outros. O pessoal de RP deveria estar olhando para os jornalistas e pensando: "aquele cara torna meu trabalho um desafio". Por que eles são todos grandes chapas? O que diabos está acontecendo?

Sempre que você critica os GMAs, como eu já fiz no passado, você se depara com a acusação de estar sendo "amargo". Eu me isolei destas acusações de certa forma por sistematicamente deixar claro que eu não sou um jornalista de jogos. Eu sou um escritor que regularmente escreve sobre jogos, isso é tudo. Eu fiquei feliz por pessoas que foram indicadas para GMAs no passado, porque eu sabia o quanto elas queriam ser aceitas por este círculo. Não há nada errado em querer pertencer ou desejar ser reconhecido por seus pares. Mas é importante perguntar a si mesmo quem são os seus pares, e exatamente a o quê você sente necessidade de pertencer.

Exatamente hoje, quando eu sentei para escrever este texto, eu vi que há jornalistas de jogos ganhando PS3s no Twitter. Houve uma competição em um destes GMAs - tuíte sobre nosso jogo e ganhe um PS3. Uma dessas coisas estúpidas e levianas. E alguns jornalistas de jogos fizeram parte. Todos se acotovelando, abrindo um saco de Doritos coletivo e tuitando a hashtag como instruídos. E hoje os vencedores foram anunciados. Então uma grande discussão aconteceu, e outras pessoas que afirmam ser jornalistas afirmaram não ver nada errado com o que aqueles assim chamados jornalistas tinham feito. Eu acho que os ganhadores estão agora doando seus PS3s, mas é tarde demais. É tarde demais. Deixe-me mostrar um exemplo.

Um dos jornalistas de jogos, Lauren Wainwright, tuitou: "Hum... Trion está dando PS3s para jornalistas no GMAs. Não tenho certeza por que isso seria uma coisa ruim?"

Agora, alguns tuítes mais cedo, ela também tinha tuitado isso: "Capa da Lara, duas fotos do TR na galeria e um fundo de TR muito sutil. #obsessed @tombraider pic.twitter.com/VOWDSavZ"

Tomb Raider

E instantaneamente estou desconfiado. Eu estou desconfiado do aparente amor por Tomb Raider desta jornalista. Eu estou me perguntando se ela não estaria no bolso do time de Relações Públicas de Tomb Raider. Eu tenho certeza de que não, mas a dúvida está aqui. Afinal, ela não não vê nada de errado com jornalistas promovendo um jogo para ganhar um PS3, certo?

Outro jornalista, um dos vencedores da competição do PS3, tuitou o seguinte para o desgostoso escritor do RPS John Walker: "Era uma hashtag, não um anúncio. Sai deste pedestal". Desta vez, este foi Dave Cook, um cara que conheci antes. Um bom cara, até onde eu sei. Mas eu não acredito nem por um segundo que Dave não entenda que nestes tempos loucos de mídias sociais uma hashtag é tão poderosa quanto um anúncio. Ou ele está na defensiva ou ele não entendeu do que se trata ser um jornalista.

Eu quero fazer uma confissão. Eu persigo jornalistas de jogos. É algo que eu sempre fiz. Eu fico de olho nas pessoas. Eu tenho uma lista mental de jornalistas de jogos que são o pior do pior do pacote. Aqueles que estão em todos os eventos de lançamento de RP, aqueles que tuitam sobre todos os brindes que ganham. Eu tenho um fascínio por eles. Eu não vou nomeá-los aqui, porque é uma coisa horrível de se fazer, mas eu tenho certeza de que alguns de vocês saberão quem são eles. Eu sou fascinado por estas criaturas porque eles estão vivendo uma das mais estranhas existências - eles estão brincando de serem uma coisa que eles não entendem. E se eles não entendem, como eles podem amar isto? E se eles não amam isto, porque estão brincando de ser isto?

Este clube, este estranho clube de amiguinhos e camaradas que constituem uma fatia considerável da mídia de jogos, precisa ser quebrado de alguma forma. Eles tem uma poderosa cola, entretanto - ligados juntos pelas pressões de tocar para a mesma audiência. Produtoras de jogos e a imprensa de jogos estão todos tentando mantê-lo feliz, e é muito mais fácil fazer isto se eles trabalharem juntos. Produtoras estão bem cientes de que alguns de vocês ficam loucos se um novo título AAA recebe uma nota patética em um site, e eles usam este conhecimento para evitar que o barco balance. Todo mundo tem uma jornada agradável se as notas de análises permanecem decentes e o conteúdo dos jogos nunca é questionado. Sites conseguem suas exclusivas. O faturamento de publicidade segue chegando. A informação é controlada. Todo mundo permanece amigável. É um fluxo contínuo de Mountain Dew jorrando das colinas dos homens de grana, descendo através dos dedos de jornalistas exaustos, direto para suas bocas. Em algum momento você terá que parar de beber aquela coisa e exigir algo melhor.

Padrões são importantes. É duro viver com eles, mas este é o ponto. O problema com o jornalismo de jogos é que não há padrões. Nós esperamos ver Geoff Keighley sentado ao lado de uma mesa de m***. Nós esperamos para ver o frenesi de excitação quando os GMAs são anunciados, no lugar de revirar os olhos e bufar. Nós esperamos ver nossos jornalistas de jogos falhando em entender o que integridade jornalística significa. Os brilhantes escritores, como John Walker por exemplo, não recebem os créditos que merecem simplesmente porque não jogam o jogo. Pelo contrário, John Walker ouve que tem que descer do pedestal porque ele tem padrões elevados e está apontando para um problema preocupante.

Geoff Keighley, enquanto isso, está sentado do lado de uma mesa de biscoitos. Uma mesa de deliciosos Doritos e refrescante Mountain Dew. Ele é, como você pode ver na Wikipédia, "um de dois jornalistas, o outro sendo o correspondente do 60 Minutes Mike Wallace, arquivado no livro de imprensa 'Geeks and Geezers' do Harvard Business School pelo notável especialista em liderança Warren Bennis." Geoff Keighley é importante. Ele é o líder em seu campo. Ele uma vez disse, "há uma falta de jornalismo investigativo. Eu queria ter mais tempo para fazer mais algum tipo de investigação". E ainda assim ali está ele, de olhos desfocados, ao lado de uma mesa lotada de Doritos e Mountain Dew.

Esta é uma imagem importante. Estude-a.

 

A parte em negrito foi cortada do texto depois de publicada, a partir de uma reclamação de Lauren Wainwright. O Eurogamer ainda pediu desculpas por qualquer inconveniente "causado à Ms Wainwright pelas referências a ela".

Esta foi a última coluna de Robert Florence no Eurogamer porque ele não trabalha mais no Eurogamer. E explicou no Twitter: "Eu estou certo de que você entende que, com as emendas, eu tive que me afastar de escrever colunas. Obrigado se você leu alguma delas".

Já circula na internet uma imagem com uma lista parcial dos jornalistas de jogos que participaram da hashtag da discórdia. Para alguns, já é uma lista negra.

Hashtag

O assunto ferveu entre os entusiastas da controversa arte de escrever sobre jogos. Nos blogs estrangeiros, como o do próprio John Walker (citado na coluna), no Digital Gumballs, no Beefjack, no Gamer Theory (republicando um artigo de março sobre a ética no setor) e outros, o debate se estabeleceu. Nas grandes mídias, como IGN, Kotaku, Gamespot, Polygon e Edge, somente um silêncio cúmplice. Geoff Keighley, o pivô-símbolo da discussão não se manifestou publicamente. A coluna de Robert Florence, a mais visitada no momento no Eurogamer, não foi traduzida para nenhuma outra versão do Eurogamer, incluindo o Português.

Segundo o Gamevício, grande depósito involuntário de tudo que se publica no Brasil, a polêmica não chegou em nossas praias. A honrosa exceção foi o podcast do Kotaku Brasil, que dedicou vários minutos à questão, também se posicionou ao lado de Florence e mencionou alguns casos de conflito entre jornalismo e "brodagem" em nosso país. Como acredito, seria preferível um texto escrito, uma declaração de princípios, mas ainda assim a turma da versão nacional do Kotaku provou mais uma vez que não é satélite da matriz.

Problemas desta natureza, onde a fronteira entre a integridade e a camaradagem se dissolve e apenas a consciência de cada um funciona como juiz no final do dia (ou não), existem até mesmo em setores mais tradicionais do jornalismo. Nos bastidores das escolas de jornalismo é sabido que os corredores do poder em Brasília são repletos de amizades duvidosas e trocas diversas, de abraços, tapinhas nas costas, charutos e jantares. Lançamentos de carros novos tem grandes festas com tudo pago por suas montadoras, incluindo passagens aéreas, para jornalistas e analistas de diversos calibres. Em muitas áreas nem mesmo existe mais a figura de um Robert Florence para expor a ferida supurada.

O jornalismo de jogos ainda está começando mas esta é a hora para corrigir seus desvios. Antes que seus dedos fiquem amarelados para sempre, manchados de Doritos e press-releases.

Ouvindo: Timothy Moldrey - Forgiveness I.

10 comentários:

Gyodai disse...

Infelizmente, isso acontece com uma frequência mais que assustadora. E sabe o que é o pior? Ver que o pessoal já entra na faculdade pensando assim. Eu sou formado em Rádio e TV e resolvi completar a minha cagada entrando no curso de Jornalismo. E mesmo na Unesp, onde a grande maioria dos estudantes da área de Humanas se vê como um revolucionário em potencial, cedo ou tarde as pessoas parecem se cansar com facilidade dos tais princípios éticos. Até entendo o porquê disso. Você estuda por quatro anos e sai da faculdade com um pedaço de papel que legalmente não significa nada. Ao sair pra procurar emprego, encontra vagas com exigências absurdas diante dos salários pagos. As pessoas ouvem "jornalista" e pensam em "Jornal Nacional", e riem quando você diz que prefere ficar à margem do esquema de camaradagem. É complicado, desanimador e faz a gente repensar a escolha todos os dias. Acredito que todos os "braços" do jornalismo sofrem com esse tipo de coisa, mas áreas menos valorizadas, como o jornalismo de games, sofrem ainda mais. Falta incentivo, por maior que seja seu amor pelo tema. Principalmente em um país onde a matéria-prima do seu trabalho é vista como brincadeira de criança ou estimulante de assassinatos em massa.

Shadow Geisel disse...

belo comentário, Gyodai.

"...a consciência de cada um funciona como juiz no final do dia..."

pois é. ainda bem que temos opção de escolher o que vamos ler, através da internet, e de criar conteúdo por nós mesmos.
muito triste tudo isso. sobre a coisa dos jogos AAA também. e o pior é que eles vão vender e continuar a sustentar o círculo, nem que seja na base do hype.
o negócio é tentar aprender com os erros e julgar por conta própria, já que na imprensa não podemos confiar.

LocoRoco disse...

O jornalismo de games é incrivelmente ridículo, acho que todos que estão aqui devem saber ou estão aqui porque sabem disso. O que mais me irrita são estas notas altas, tudo ganha 9,5 é incrível. E se um jogo tem 75 no metascore é porque foi um fracasso. Eles ainda se defendem dizendo que é opinião deles. Claro que todos tem uma opinião pessoal, mas só isso não te faz um "jornalista de games", apenas falar que tu gostou, dar 10 e tua nota entrar para o metacrict é sacanagem.
Outra matéria legal sobre a polêmica: http://www.gamasutra.com/view/news/180134/It_takes_all_kinds_Video_game_cultures_weird_identity_crisis.php#.UIxwY2_A-tY

E uma imagem para completar: http://imageupload.ca/?di=U54E

Gabriel disse...

Infelizmente jogos com "nomes" pesados sempre ganham notas boas. Parece que todo titulo de COD é revolucionador...mas para mim é o mesmo que o anterior, do anterior, do anterior...
Não só isso, sites como a Gamespot, IGN(Essa é mais entretenimento, então as vezes eu não me importo muito com a opnião dela)se importam com a grana, já vi um redator da gamespot ser demitido por causa que deu nota baixa para um jogo da rockstar que o site fazia propaganda pesada.
Já vi jogos muito bons, ganharem nota baixa, na realidade, jogos melhores que os com "nome pesado", que simplismente ganha nota baixa por que é exatamente igual algum famoso...(todo fps tem que ser comparado ao COD)
Se for por isso, toda maldita analise de fps deveria dizer:
O jogo se parece muito com Half-life/Wolfstein 3d/Doom...e ganhar nota baixa por isso.
Ou rpgs, já vi jogos bons tipo diablo like que na analise dizia: "É igual Diablo 3, porém inferior"
Poxa vida, um desses jogos proporciona diversão maior e você teoricamente só precisa comprar o produto principal e tem tudo...mas tem que comparar pq é de um estudio que não dá tanto dinheiro, quanto um maior.
Vale mais a pena ver Review do Baixaki Jogos, da gamevicio(Cara como acho esse site tenso), ou dos jogadores, do que do sites famosos.
Enfim, me indigna isso (y)

Breno disse...

Isso já é uma coisa que eu tenho falado constantemente por aqui, e não é surpresa pra ninguem que tenha uma experiencia razoavel em jogos. é fato que os "jornalistas" não passam de apologistas. São tres os problemas principais desse campo: Imcompetencia, inexperiencia e corrupção.

Os sites grandes não vão se pronunciar, porque logicamente eles participam nesse esquema de troca de favores. Dia desses eu vi uma reportagem no SKrotaku que era sobre desempacotar 500 dolares de mercadoria de Halo, já ganharam um xadrez de 300 dolares da Capcom, fazem reportagens de apologia a industria(porque será), etc... é triste tudo isso, porque as fontes de leitura estão cada vez mais escassas...

Breno disse...

@Locoroco: Essa imagem que vc postou é profetica. Na verdade sempre foi assim, mas ironicamente na era da internet eu acho que piorou.

Augusto Lacerda Dalpiaz disse...

Bem que o nome do artigo poderia ser Black Mesa

Shadow Geisel disse...

enganação. jogo com defeito de fábrica. propaganda enganosa. jogo com final incompleto. jogo que mesmo offline só joga se tiver internet (a desculpa pra coleira é a pirataria). jogo com conteúdo bloqueado.
nós, jogadores, estamos muito bem servidos...

Jimmy Fischer disse...

Bom, isso aí acontece em todas as areas.É o poder que o capital exerce em tudo, política, jornalismo, economia, etc.
Por isso eu sempre procuro fontes confiáveis e com um perfil mais "Á esquerda".
Quando vou me informar sobre futebol, olho o blog do Juka Kfoury ou o do Kajuru, por exemplo.
Por outro lado também não existem virgens, melhor mesmo é ter a própria opinião em tudo.

Gyodai disse...

Saber separar, né Jimmy. É bem por aí mesmo.
O problema é que tem gente que coloca a opinião desse ou daquele cara em um pedestal e sai vomitando as coisas que o cidadão fala ou escreve como se fossem princípios instituídos. Gosto muito do que o Aquino escreve, mas não concordo com tudo o que ele diz. E acredito que é isso que ele espera.
Eu gostaria muito de sair da faculdade e trabalhar com jornalismo de games, mas muitas coisas me fazem desistir dessa possibilidade. Trabalhar na indústria do entretenimento é algo complicado, porque é muito difícil não soar, digamos, publicista (sei que é um termo usado em jornalismo político, mas acho que se aplica no caso muito bem). O jornalismo de entretenimento é permeado pelo conteúdo opinioso e é muito fácil usar isso como argumento quando se age com má fé ou na camaradagem.
Mal pelo outro "livro-comentário", mas esse assunto me intriga.

Retina Desgastada

Blog criado e mantido por C. Aquino

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