Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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30 de junho de 2012

Por Que Não Violência?

Em algumas raras ocasiões, esbarro em textos tão bons e completos que não tenho outra alternativa a não ser traduzi-los na íntegra. O artigo abaixo foi publicado originalmente no site da CNET Austrália e traz algumas reflexões não apenas sobre os jogos e a violência, mas sobre a própria forma como a violência é encarada na sociedade. Só as duas citações de abertura já abrem uma impressionante perspectiva sobre os "problemas da juventude":

"Muitas pessoas vêem o atual grupo de estudantes de faculdade - algumas vezes chamados de 'Geração Eu' - como um dos mais auto-centrados, narcisísticos, competitivos, confiantes e individualistas na história recente... Em termos de conteúdo de mídia, esta geração de estudantes de faculdade cresceu com jogos eletrônicos, e um crescente grupo de pesquisa, incluindo trabalhos realizados por meus colegas em Michigan, está estabelecendo que a exposição a mídia violenta entorpece as pessoas para as dores dos outros."
Sara Konrath, Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Michigan.

"As crianças agora amam luxúria; elas tem maus modos, discordância pela autoridade; elas mostram desrespeito pelos mais velhos e preferem tagarelar ao invés de se exercitar. Crianças agora são tiranos, não os servos de suas casas. Elas não mais se levantam quando um senhor entra na sala. Elas retrucam seus pais, conversam na frente dos outros, devoram guloseimas na mesa, cruzam as pernas e tiranizam seus professores."
atribuído a Sócrates por Platão, de acordo com William L Patty e Louise S Johnson, Personality and Adjustment, p. 277 (1953).

O resto do texto de Michelle Starr segue abaixo (imagens por minha conta):

"Nós nunca tivemos um mundo com jogos eletrônicos onde outras formas de mídia não existam; eles ganharam popularidade nos anos 80 e 90, uma época na qual filmes violentos e temas narrativos deram origem às histórias que temos hoje; uma época em que tivemos heavy metal, quadrinhos, blues e  O Apanhador no Campo de Centeio.

Onde você encontrar cultura pop, você também irá achar um bode expiatório: haverá aqueles que querem atribuir o aberrante comportamento juvenil a uma coisa, e demonizá-la em exclusão de todo o resto.

Embora alguns possam desejar o contrário, estudos tem demonstrado que jogos violentos podem levar a um aumento de agressão tanto em crianças quanto em adultos. Se isto se traduz para comportamento violento é outra questão; por exemplo,  um estudo publicado no ano passado sugere que, ainda que a agressão seja elevada, o fato de que jogadores gastam tempo jogando jogos eletrônicos ao invés de cometer crimes violentos cancelaria o efeito; mas jogos violentos levam a uma mudança de personalidade de longo prazo em direção a mais reações agressivas às situações?

A resposta é, nós não sabemos. Nós não podemos saber. Porque outras formas de mídia também estão preenchendo nossas cabeças de ideias.

Kratos Tome por exemplo, o tema da vingança. Algo ruim acontece; o protagonista sai em um surto de vingança. Vamos dizer... Duro de Matar. Gruber tomou a esposa de McClane como refém. Agora é pessoal, e McClane não irá parar para nada até ganhar o dia. Ou Código de Conduta. Kill Bill. O Corvo. Está OK, o filme nos diz. Eles são pessoas ruins.

E nós vamos embora e voltamos para nossas vida, e isso é tudo.

É possível, entretanto, que nós internalizemos esta mensagem: que aqueles que nós fazem mal são pessoas ruins e merecem coisas ruins? Claro que sim. O pior que pode acontecer para a maioria de nós é aquele desejo inconfessável de que a pessoa ruim pise em um Lego ou leve uma bronca no trabalho, que nós guardamos para nós mesmos, e nenhum dano acontece de verdade.

E isto é o que alguns estudos (PDF) encontraram (PDF): que o efeito dos jogos violentos em sua maioria não é comportamental, mas de atitude. Ou seja, existe uma dessensibilização para a violência e um aumento na percepção de que violência é OK - e uma redução na empatia.

Mas como nós desvencilhamos isto de outras formas de mídia? Se nós temos filmes nos dizendo que nós somos heróis em nossas próprias vidas, desenhos dizendo que bater nos caras maus é uma boa coisa, uma cultura esportiva onde o apoio fanático aos times ao ponto em que hostilizar qualquer um que apóia um time diferente está certo, e assim vai - a menos que nós calculemos o efeito destas formas de mídia também e façamos comparações, nós não podemos afirmar de um jeito ou de outro se jogos eletrônicos tem mais efeito. E, ao contrário do sexismo, onde existe ampla evidência de que uma larga parcela da comunidade de jogadores está muito propensa a ameaçar, objetificar e discriminar, nós não temos tantos exemplos que demonstrem que jogadores são mais agressivos do que qualquer outra pessoa.

Na verdade, nós temos dados estatísticos que sugerem que taxas de criminalidade e vendas de jogos eletrônicos não estão relacionadas — e, enquanto é verdade que alguns perpetradores de crimes violentos jogaram um título ou ou dois, é igualmente verdadeiro que estes mesmos perpetradores provavelmente também assistiram um filme de super-herói ou comeram pão.

Parece que algumas pessoas tem tendências violentas e outras não; e eu apostaria que status socioeconômico, ostracismos social e bullying são muito mais prováveis de acionar estes impulsos do que cortar alguns zumbis na telinha.

Dead Island

Jogos eletrônicos precisam de violência? Em certo nível, sim: Mario não seria Mario sem esmagar cogumelos, e Call of Duty não seria Call of Duty sem soldados. Remova a violência, e sobra Tetris, The Sims e Paciência (embora, mesmo com The Sims, um grande número de jogadores se divertem em matar seus carinhas). Nós humanos somos um grupo visceralmente brutal; das arenas de gladiadores e justas até as execuções públicas e esportes de contato, em algum nível, um banho de sangue pode ser relativamente satisfatório - e a maioria de nós é inteligente e consciente o bastante para separar ficção de realidade, quando se trata de jorro de entranhas em nossas telas - entretanto, é senso comum monitorar cuidadosamente que jogos crianças estão jogando.

Dito isto, violência pela violência é apenas preguiça, e eu nunca fui fã de valor de choque auto-indulgente - mas a estupidificação dos jogos é outra discussão. Para outro dia, talvez."

A discussão iniciada por Starr vem em uma hora propícia, logo em seguida à liberação de jogos para maiores de 18 anos na Austrália.

É uma pena que ela não retorna às duas citações de abertura, mas a mensagem que surge da comparação delas é inevitável: jovens sempre foram e sempre serão jovens, com toda sua carga de rebeldia, de busca pela auto-satisfação, que fazem parte do ritual de criação da própria identidade. Desde Platão, e a culpa não é dos jogos eletrônicos, da música, do cinema ou dos livros, como bem salientou um artigo da Wired. Como Starr diz, "onde você encontrar cultura pop, você também irá achar um bode expiatório".

Osama Bin Laden - Apodreça no Inferno A cultura da violência, da solução de problemas através da violência, existe no próprio conceito de polícia e forças de repressão, está presente na pena de morte aplicada pelo Estado de direito, está presente na operação ilegal realizada em um país estrangeiro de execução de um homem que cometeu um crime contra a Nação (e a subsequente "desova" do corpo no mar, sem julgamento, sem Justiça). Existe na ocupação de terras que pertencem a outros povos, existe no bombardeio indiscriminado de regiões em conflito, existe na prisão daqueles que só usam as palavras para expressar seu descontentamento e fazer perguntas. Não é a onipresença dos jogos eletrônicos que dissemina a cultura a violência. É a realidade vista nos telejornais que dissemina a vontade de fazer o mal àqueles que são classificados como pertencentes ao Eixo do Mal: sejam eles muçulmanos, gays, coreanos, bandidos ou judeus. Muito antes dos jogos aparecerem, havia aqueles que estendiam seu ódio e sua fúria contra quem se resolvesse inserir no subgrupo dos "que merecem".

Talvez pareça vulgar defender o direito da violência nos jogos. Como defender tanto sangue, tantas mortes, tantos detalhes mórbidos? É claro que eles fazem parte do problema, inseridos dentro de uma cultura muito mais ampla. Mas, como também aponta Starr, existe uma possibilidade de que eles funcionem como válvula de catarse, uma função que até o provável próximo Dalai Lama já defendeu. Tratar a questão da violência dentro de um cenário virtual, onde seu resultado é inofensivo.

Cultura das Armas

Mesmo que sua função catártica nunca seja comprovada, é óbvio que apontar dedos para a indústria é o mesmo que mascarar problemas concretos. Os terroristas chechenos que fizeram o massacre do Aeroporto de Moscou não estavam influenciados por Call of Duty: eles tinham um propósito e uma agenda que não foi questionada. Afinal, o que está acontecendo na Chechênia? Anders Behring Breivik não foi motivado por World of Warcraft. Ele é fruto de um crescente sentimento xenófobo que se espalha por uma Europa em crise econômica e é alimentado pelo discurso da extrema-direita com vínculos religiosos. Não se questiona o acesso fácil a armas de fogo. Não se presta auxílio concreto às anônimas vítimas diárias de bullying.

Então, não se trata de defender o meu direito de cortar zumbis (ou matar crianças...). Se trata de assoprar a cortina de fumaça, arregaçar as mangas e ir atrás de problemas verdadeiros.

Ouvindo: Distrans - Falling Gas

12 comentários:

Marcos A. S. Almeida disse...

Concordo com todas as colocações.Obrigado Aquino por traduzir algo desse naipe.Textos como esse devem ser reverberados pela web afora.Só a parte das "criancinhas virtuais" é que discordo.E Skyrim, quebrou esse tabu como você esperava?

Raphael AirnMusic disse...

Texto longo, lerei mais tarde e volto pra opinar =)

Breno disse...

"Só a parte das "criancinhas virtuais" é que discordo.E Skyrim, quebrou esse tabu como você esperava?"

Matar crianças em jogos não é muito diferente de matar NPCs ou animais indefesos em jogos! Esse feitichismo anti violencia contra crianças é uma bobagem! E qual tabu é esse que Skyrim quebrou! Que eu saiba as crianças são imortais nesse jogo! Jogos que permitem morte de crianças(note que eu falei morte,a possibilidade de uma criança morrer,seja pelas açoes do jogador ou pelos NPCs)são Fallout 1/2,Deus Ex e Ultima(tem outros,mas eu não lembro)! Fallout também é culpado desse feitichismo pro-criança,visto que o personagem é estigmatizado se matar uma criança,mas pode se redimir se matar adultos de bom carater(justo isso?)!

O artigo é bom,mas sofre de muitas palavras para atingir o publico alvo!

Marcos A. S. Almeida disse...

Breno, da ultima vez que o Aquino falou sobre matar crianças em jogos, ele acreditava que Skyrim - que estava por ser lançado - poderia quebrar esse tabu.Mas de maneira indireta você já respondeu que não,não foi quebrado e o tabu continua.Eu não usaria fetichismo pois essa palavra têm conotação sexual, mas matar "criancinha virtual" definitivamente não é de bom gosto.Matar "bonecos" de feitio humano é algo que foi condicionado como normal com o passar dos tempos.Os humanos eram de pixels totalmente "quadrados" nos primeiros jogos,e depois foram ganhando texturas mais realistas , mas a normalidade para o "assassinato" de humanos virtuais já estava instaurada.Mas existem instituições e valores que têm uma simbologia tal que se forem atacadas podem despertar reações negativas.Crianças representam algo puro e indefeso ,e mata-las em jogos é atacar essa simbologia.E não vejo a necessidade nem sentido em colocar crianças em um jogo para simplesmente mata-las.O vídeo de Dead Island é de certa forma cruel - nem por isso menos belo - mas a representação ali não têm nenhum traço de sadismo e é uma obra fechada e de bom gosto.Um jogo com morte de crianças PODE se prestar justamente á isso , á prática do sadismo.Mas tudo depende de como uma criança será representada , se ela terá traços de maldade ou se terá uma figura angelical, se ela portará uma arma ou se estará indefesa, se a animação da morte será uma simples "evaporação" ou se terá desmembramento, são detalhes que á meu modo de ver poderão torna o jogo digno de ojeriza ou se será classificado como normal.Mas acho que contar com o bom senso de algumas mentes é algo arriscado, portanto é melhor deixar as crianças virtuais literalmente "fora da jogada".

Shadow Geisel disse...

"Tratar a questão da violência dentro de um cenário virtual, onde seu resultado é inofensivo."

será que o ato de "matar" personagens em um jogo difere tanto assim do ato de fingir que dois soldadinhos de plástico estão se metralhando? pra mim, toda essa questão devia girar em torno do texto entre aspas acima.

Breno disse...

Ora,mas existem jogos que o sadismo faz parte da natureza do jogo! Pegue Fallout 3 por exemplo! O jogo não permite matar crianças,mas a violencia que eu posso colocar nos inimigos e NPCs não crianças é de um sadismo puro! Posso cortar todos os membros de um NPC idoso e indefeso e jogar a sua cabeça numa privada,onde até os desenvolvedores cantavam loas a essas caracteristicas violentas! Se esse tipo de sadismo pode,porque não a morte de crianças? O jogo até faz um disserviço para a causa pró-criança visto que ele permite agredi-las,além de elas serem MUITO irritantes(Little Lamplight)!

Fernando Lorenzon disse...

Recomendo assistirem ao episódio de Penn & Teller Bullshit S07E03, sobre jogos violentos. Se gostarem, assistam o restante porque o programa é muito bom.

C. Aquino disse...

Marcos e Breno, releiam o texto sobre "matar crianças": não defendo o simulador de "child killer"! Seria, de fato, uma peça de tremendo mau gosto. Mas o medo de que os jogadores possam fazer besteira e a mídia possa cair em cima afastou totalmente o uso de crianças por parte dos desenvolvedores. Costuma-se ter dois pesos e duas medidas quando se fala de jogos eletrônicos: Sarah Connor é molestada por um enfermeiro em Exterminador do Futuro 2, dá troco, mostra que é dura na queda e ninguém reclama. Lara Croft pode ser molestada no próximo Tomb Raider e de repente todo mundo está dizendo que isso é inconcebível! Eu não quero que Lara Croft seja molestada tampouco, mas, se isso fizer parte do arco narrativo que os autores querem produzir para o "surgimento" da personagem, por que não? A violência pode ser usada como motor narrativo. Ela não pode é ser usada como divertimento gratuito ou cortina de sangue para disfarçar a falta de roteiro. Assim como palavrões, sensualidade ou mesmo elementos menos polêmicos como gráficos de ponta ou dublagem de atores famosos.

Shadow, as pessoas que se chocam tem mais dificuldade de separar realidade de fantasia do que as pessoas que são a "causa" do choque. E não é só nos jogos: http://revista.cifras.com.br/noticia/clipe-do-is-tropical-causa-polemica_2761

Fernando, eu adoraria assistir isso mas infelizmente meu inglês de ouvido é sofrível! O vídeo foi fácil de achar, mas não achei legendas (até em inglês serviriam...)

Breno disse...

Bom eu defendo simuladores de estrupo como Rapelay! Esse negocio de relativismo é bobagem e hipocrisia para mim!

breno disse...

Desde que vc não queira trazer os habitos pevertidos do jogo(como matar e estrupar) para a vida real pra mim ta OK!

Breno disse...

"não defendo o simulador de "child killer"!"

Fallout 1/2 e Deus Ex são simuladores child Killer e Bum Killer(Bum é mendigo em ingles)! Basta vc querer!Jogos Nazistas do Carai!

Breno disse...

Ah esqueci, em Fallout 2 vc pode ser cafetão e prostituir o seu corpo!

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