Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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5 de outubro de 2011

Quem Está Lá Fora?

"Então, como nós sabemos quem é humano? Se eu fosse uma imitação, uma perfeita imitação, como vocês saberiam que sou realmente eu?"

Childs, The Thing (1982)

The Thing - Box Como já comentei antes, tenho o estranho hábito de entrar na pele dos personagens, quer o jogo seja um RPG ou não. Em The Thing, ao entrar em um posto abandonado na imensidão da Antártida, tive o cuidado de fechar a porta ao passar. Em minha imaginação, o frio que fazia do lado de fora poderia entrar na sala e eu já tinha travado contato com criaturas inumanas na neve. Era natural que o personagem fechasse a porta. Uma parte do meu cérebro racional me chamou de "idiota" instantaneamente. Explorando o ambiente, metros mais à frente, eu vislumbrei um vulto passando pela janela lá fora. Um vulto que não poderia pertencer a um ser humano. O vulto estava indo na direção da porta. Instantes depois, alguma coisa que não deveria existir estava testando a porta. A mesma porta que eu havia trancado. Minha espinha gelou e daquele ponto, até o final do survival horror, aquela parte do meu cérebro racional não falou mais nada e minha imersão foi completa.

Nenhuma outra porta foi fundamental antes no jogo e nenhuma outra depois. Milhares de jogadores provavelmente passaram por ali e a deixaram aberta, enfrentando a criatura antes de estarem preparados. Para aqueles que embarcaram na história, foi um instante de realismo e calafrio para nunca mais ser esquecido.

O título foi um dos dois jogos criados pela extinta Computer Artworks. A desenvolvedora inglesa trabalhava com projetos multimídia para cinema, TV, música, moda e qualquer coisa que precisasse de um toque digital. Seu portfólio incluía o famoso screensaver Organic Art dos anos 90, clipes para festas rave, capas de álbuns de bandas eletrônicas, gráficos para o famigerado filme Hackers e até uma coleção de roupas. Em 2000, eles criaram o jogo Evolva e, dois anos depois, conseguiriam desenvolver um dos poucos jogos baseado em um filme que não apenas faz jus ao material original como ainda o expande. The Thing foi lançado pela mesma empresa responsável pelo jogo perdido do Metallica: a igualmente já fechada Black Label Games. E se tornaria o seu verdadeiro legado.

A Infecção se Alastrou

O jogo é a continuação oficial do filme The Thing (O Enigma de Outro Mundo), dirigido pelo mestre do terror John Carpenter vinte anos antes. O filme por sua vez é a reinvenção do filme The Thing from Another World (Terror no Ártico), de 1951. Que, por sua vez, é baseado no  conto de ficção-científica "Who Goes There?", de 1938! É uma longa trajetória e o jogo não se intimida diante da responsabilidade. No filme de 1982, um grupo de cientistas isolados em uma instalação antártica se vê à mercê de um organismo alienígena metamorfo capaz de imitar com perfeição a aparência humana e se multiplicar. Apesar dos impressionantes efeitos especiais e caracterizações da monstruosa entidade, Carpenter foca pesado no clima de paranóia e suspense que toma conta dos homens aprisionados com o monstro. Quem deles ainda é humano? Quem não é mais? O clássico continua até hoje na minha seleção de filmes favoritos.

The Thing - McReady

The Thing, o jogo, começa dias depois do final do filme de Carpenter. Um esquadrão militar é enviado para a base científica para investigar o motivo do silêncio de seus ocupantes. Uma grande tempestade se aproxima e o local voltará a ficar isolado do mundo exterior por um longo tempo, assolado por um frio mortal. A familiaridade de pisar no mesmo local já vista é automática e os pelos de minha nuca já estavam eriçados muito antes de aparecer o primeiro perigo. Era como visitar uma casa onde se viveu muitos anos atrás. Naturalmente, a ameaça alienígena não foi erradicada e a desconfiança atinge a equipe, enquanto monstros perambulam pelo ambiente. No desenrolar da trama, mais uma vez percebemos que a mente humana e a ganância são capazes de produzir horrores ainda maiores do que aqueles oriundos do espaço. Aquilo que começa na base original, se espalha por outras locações do continente gelado enquanto o protagonista desvenda uma sinistra conspiração. Ao longo da história são oferecidas diversas homenagens ao filme, incluindo registros de seus personagens, uma visita ao local onde o alienígena foi escavado do solo, um personagem que é a réplica exata de John Carpenter (e dublado pelo próprio diretor!) e culmina com uma aparição surpresa no final.

The Thing The Thing 02

A mecânica do esquadrão funciona a contento, com uma inteligência artificial razoável e muitas falas gravadas. A impressão que se tem é de se estar andando com pessoas de verdade, o que só aumenta a tensão. Qual deles não é mais o que parece ser? Também é possível que eles desconfiem do personagem principal, se recusando a colaborar! Ou estariam fingindo? Os NPCs que podem se juntar ao protagonista se dividem em Militares (dão apoio tático em combate), Engenheiros (capazes de desbloquear portas travadas) e Médicos. O equipamento é controlado pelo jogador e é impossível não criar um laço emocional quando sua vida depende da cobertura de um deles ou das curas do outro e a sobrevivência deles está diretamente ligada a sua capacidade de lutar e aos itens que você fornece.

O foco no aspecto humano diferencia The Thing dos demais títulos de survival horror porque, ainda que você consiga companheiros de aventura, seu destino nem sempre é o melhor. Geralmente é o pior possível, em cenas de repulsa e desespero. Com esforço, é possível prolongar a vida de diversos NPCs, mas muitos estão condenados desde o início. E logo vem a solidão. O nível de tensão atingido nos momentos de travessia solitária beiram o insuportável. Não se trata apenas de ter uma cobertura ou alguém para destravar portas ou alguém para curar seus ferimentos. Se trata de saber que você é provavelmente o único ser humano de verdade em um raio de quilômetros. Ao contrário de Isaac Clarke em Dead Space e seu quase perpétuo estado de solidão, em The Thing a companhia é oferecida e removida, oferecida e removida, sempre com resultados trágicos. Para ampliar a sensação de isolamento, a tempestade castiga as cenas exteriores, amplifica o vazio da Antártida e o frio pode matar o protagonista se ele permanecer muito tempo exposto. The Thing é um jogo onde até a natureza conspira contra você.

The Thing 04

As aberrações do espaço antecedem o trabalho da Visceral Games em muitos anos. Desarticulados, deformados, repulsivos. Ex-humanos. Para destruí-los, não basta esvaziar o pente de uma metralhadora. Com tiros, tudo que se consegue é enfraquecer cada criatura. O golpe final precisa ser pelo fogo ou por explosão, ou cada um eles irá se regenerar. Cercado por mais de uma abominação, sozinho, sendo obrigado a trocar de arma no meio do combate, rezando para o combustível do lança-chamas não se esgotar: isto é o formato do medo. Isto é aquilo que está lá fora, forçando a porta para entrar.

The Thing 03

Terror Eterno e Paciente

The Thing 2 estava em desenvolvimento pela mesma Computer Artworks e seria lançado a princípio apenas para Xbox e Playstation 2. Infelizmente, o projeto foi cancelado após o fechamento da desenvolvedora. Depois de tantos fracassos, a Black Label Games seguiria o mesmo caminho, sendo incorporada pela Vivendi Interactive, que teria vida curta. Desta possível continuação restaram apenas um punhado de imagens.

The Thing II - Torso Scuttler The Thing II The Thing II - Bio Beast

Mas a forma de vida alienígena não conhece repouso ou fim. Para surpresa de muitos, o metamorfo prepara o seu retorno nos cinemas. O novo filme, também batizado de The Thing, chega ao Brasil em 2 de dezembro. Apesar do nome idêntico, a história é um prelúdio ao clássico de Carpenter, mostrando os eventos que aconteceram no acampamento norueguês, antes da criatura escapar e chegar à base americana. Confira o perturbador trailer abaixo (atualizado em 08/10: versão com legendas):

O fato do novo filme não chegar acompanhado de uma versão para jogos eletrônicos é um grande alívio, se compararmos com a média de produções do gênero realizadas às pressas. Com sorte, talvez as bilheterias justifiquem um ressurgimento do primeiro jogo ou uma verdadeira continuação. O terror aguarda lá fora, no gelo.

Ouvindo: Tom Waits - Time

7 comentários:

NevesZerg disse...

Na epoca do filme . eu muito jovem ainda, fiquei umas 3 noites sem dormir.

Marcos A. S. Almeida disse...

Desisti do jogo pela dificuldade.Existe um momento em que temos de defender uma base da invasão desses monstros.Depois de muito tentar, consegui mas percebi que teria de enfrentar dificuldades similares no futuro e desisti.Pra mim, se o jogo não fluir, desisto.Até Stalker SoC eu desisti tamanha a dificuldade e variedade de bugs , mesmo já próximo do final.
Aquino eu gostaria muito mesmo de enxergar alguns jogos com a mesma magia que você enxerga.Esse The Thing mesmo, não conseguir ver ele da mesma forma.Não estou dizendo que você está errado, pelo contrário, acho que é uma deficiência minha.

C. Aquino disse...

NevesZerg, eu assisti esse filme na televisão quando tinha uns dez anos. Foi uma noite difícil de dormir... qualquer latido de cachorro na rua me fazia tremer.

Marcos, você está certos sobre a dificuldade. Principalmente porque The Thing, sem um patch especial (e acho até não-oficial) só salva nos checkpoints. Morri MUITAS vezes até encontrar o patch que habilitava quick save e já estava perto do final. Houve uma batalha em uma escadaria que eu provavelmente joguei mais de trinta vezes, tentando salvar o NPC que estava comigo. Foi quando eu surtei e fui ao Google atrás de um patch, hack, sei lá o quê. Mesmo assim, foram mais uma cinco tentativas até sair de lá. Sou da mesma opinião: se o jogo não fluir, desisto. The Thing foi uma raríssima exceção à regra.

Poa Kli-Kluu disse...

Jamais havia sequer ouvido falar, vou jogar esse jogo.

Com relação à dificuldade eu acho relativo, eu lembro de quando eu jogava Alex Kid, ou Megaman 5 que era tão difícil que eu sacrifiquei vários controles na parede, devido a raiva. Mas eu sempre tive um appeal por dificuldades elevadas; Acho que me sinto como se quisesse me testar(tipo quando é feito um autodesafio:"Se eu conseguir chegar na padaria em 5 minutos, eu sou feliz"). Não é a toa que a maioria dos jogos que começo a jogar eu sempre escolho modo Hard, para depois jogar no Experto. Foi assim no Dead Space, Shadow of Chenobyl e muitos outros, mas claro que também depende da habilidade do jagador, mas no meu caso, estou acostumado a morrer bastante e dar respawn. lol


Uma coisa que eu achei curiosa, no trailer do filme eles citam "dos mesmos produtores de Dawn of the Dead", será que eles querem dizer o novo Madrugada dos Mortos, remake feito por Zack Snyder? Adoro esse diretor e se ele for mesmo dirigir o filme ou participar em alguma coisa, já conta muitos pontos.

Um filme que eu morri e fiquei sem dormir quando pequeno foi Tomates Assassinos o.o, morria de medo MESMO.

Com relação ao seu modo de jogar Aquino, fico feliz em saber que temos isso com comum. Ao criar meu personagem no Fallout3, eu criei um personagem, quase que fazendo uma ficha de RPG, ele tem uma história, ele tem um modo de pensar e de ver a vida, ele passa por dificuldades na vida e muda seu cenário psicológico, ele amadurece, se transforma, vive. Todas árvore de diálogo eu tento não voltar a traz e fazer apenas as perguntas que meu personagem faria, assim como tento não salvar a cada 5min por é uma quebra terrível à imersão, eu jogo apenas com os QuickSaves. Fiz isso em muitos outros jogos, como Neverwinter Nights, Dragon Age, Dungeon Siege, Mass Effect e muitos outros. Sou um jogador de rpg que adora interpretação, assim como faço e adoro teatro. Acho que isso é uma características de pessoas que apreciam essa forma de arte, pois tenho muitos amigos que simplesmente pegam uma metralhadora e saem matando velhinhas em GTA.

Ótima matéria (;

Poa Kli-Kluu disse...

E isso se expande muito mais, agora que parei para pensar. Eu gosto de jogar de madrugada e com fone, por causa do silêncio. Teve dias que varei uns dois dias sem dormir jogando Fallout3, proeza que poucos jogos me fizeram cometer.

E como havia comentado no outro post "(Des)construindo RPG", acredito mesmo que falta muito tempo até termos nosso rpg ideal. Mas até lá, Minecraft funciona mto bem em te mostrar como as coisas mudaram o/

Breno disse...

Poa:Se vc dissesse que pratica LARPing simplificaria bastante xD(2 dias sem durmir?LOL toma cuidado cara)!

Eu sou mais estilo powergamer,aquele que sempre maximizar o status,ganha mais experiencia,etc.

Acredito que até agora o unico jogo que me fez "entrar" no personagem na forma como ele ve o mundo foi Vampire:Bloodlines. Dialogos bem trabalhados,histórias e quests interessantes aliado a uma das melhores atuações de voz ja vista em um jogo(o rival mais proximo talvez seja a serie legacy of kain) foram necessários para esse feito.

Aquino ainde é tempo de uma matéria sobre a direção de arte de silent hill 3,ou vc recomendar alguma historia de amnesia.

Breno disse...

Acredito que uma coisa que eu observo no Larping é como se fosse o jogador lançando anticorpos para amenizar os diversos problemas de design que um jogo pode encontrar. Essas coisas que o Poa falou por exemplo de amadurecimento e mudança do personagem realmente são coisas imaginarias que não se encontram no jogo. Acredito que quanto mais coeso e preciso for a história,design e mecanicas em um determinado jogo,menos necessidade de "larping" o jogador vai ter. Veja o caso de Bloodlines por exemplo. Um jogador padrão vai agir como um vampiro bem pragmatico,sugando os humanos(por necessidade,pois é muito dificil se manter só de sangue vendido hospital)e em geral não vai dar a minima para a raça humana(é bem capaz de o jogador perder experiencia e humanidade por tentar ser bonzinho com humanos,embora isso não o impessa de faze-lo,mas no contexto deles seria como fazer uma caminhada mais tortuosa).

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