Retina Desgastada
Idéias, opiniões e murmúrios sobre os jogos eletrônicos
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7 de janeiro de 2011

O Legado de Tron (Parte 3)

Poster Em 1982, eu tinha oito anos de idade. E assisti Tron. Em tributo àquele garoto que nunca deixou de existir, eu escolhi o dia do meu aniversário de 37 anos para assistir Tron: Legacy. O garoto olhou para a tela com leve enfado, seu rosto tão intacto quanto o de Jeff Bridges, preservado em memória, imaculado. Eu virei para o meu eu de oito anos e perguntei a ele o que achava. Ele respondeu com um riso rápido, olhou no fundo dos olhos de sua versão adulta e disse: "não esquenta não, meu velho; nós sempre teremos o primeiro guardado aqui dentro". Da última vez que eu vi, ele saiu gritando feliz da vida em cima de uma moto de luz só se movimenta em ângulos retos, me deixando sozinho para escrever esta análise. Pode conter spoilers.

Tron: Legacy é, ao mesmo tempo, fantástico e chato, respeitoso e covarde, descartável e clássico.

Antes de tudo vale dizer que, ao contrário do que se possa imaginar, Tron:Legacy não é um mero caça-níqueis engendrado pelos barões de Hollywood interessados em espremer o sangue de uma velha franquia. É notável o cuidado de respeitar o trabalho original, de trazer de volta os mesmos veículos, combates e conceitos do primeiro filme. Tudo também foi fortemente repaginado para agregar referências culturais e visuais de Tron, Matrix, Guerra nas Estrelas e seus respectivos clones. As lutas são mais frenéticas, mais picotadas, em mais dimensões. E Jeff Bridges voltou. Se o ator estava em ascendência em 1982, hoje em dia ele é uma lenda viva, capaz de roubar todas as cenas em que participa, seja na forma do Criador Kevin Flynn, seja em seu avatar maligno CLU. É patente sua felicidade em trabalhar na continuação.

Kevin FlynnInfelizmente, nada disso se sustenta dentro de uma história que, mesmo simplista, é mal resolvida. Há excelentes personagens em cena que poderiam render diálogos magníficos ou levantar questionamentos na mesma linha de Blade Runner e tudo isso é mero pano de fundo para fugas, lutas e luzes. O ator principal não se sustenta por muito tempo ou gera empatia, um hiper-rebelde Anakim Skywalker Sam Flynn que, aos 27 anos, ainda se comporta como tivesse 17. A seu eventual interesse romântico, que não se concretiza em nenhum momento, não é dada função alguma além de desfilar em roupa apertada e exibir um olhar de constante espanto (justificável, mas algumas linhas inteligentes de diálogo fazem falta). O vilão, uma brilhante sacada do roteiro, apresenta momentos de brilho alternados com discursos constrangedores e atitudes irracionais. Mesmo o Criador é mal-aproveitado e abdica de sua postura pseudo-zen em um piscar de olhos. Existe também uma figura no filme que consegue ser uma mistura de partes iguais de David Bowie, Hedwig e Merovingian, que rouba o foco em um dos mais socialmente interessantes cenários do filme e destoa de todo o resto. Tron:Legacy ainda comete o erro de subutilizar o ator Cillian Murphy, que só aparece em uma rápida cena como um programador com poucos escrúpulos.

CLUE o que dizer do personagem-título? Se no primeiro filme, o programa Tron é um coadjuvante de luxo de Jeff Bridges, aqui ele é um mero figurante de luxo, exercendo injustamente pouca ou quase nula influência na trama.

Não que o filme de 1982 exibisse incríveis talentos dramáticos ou uma história intrincada ou instigante. Mas, quando você tem 28 anos para elaborar uma continuação, uma dose de capricho extra é esperada. O importante naquela época era o deslumbre, a abertura de uma janela para um horizonte totalmente alienígena.

O que sua continuação nos traz? Nos primeiros cinco minutos em que Sam Flynn é transportado para a nova versão do mundo virtual paralelo, eu saboreei avidamente cada fotograma, cada detalhe impecável da direção de arte. Também foi o tempo exato que levei para perceber que o filme que revolucionou minha visão havia sido hereticamente ultrapassado pelos jogos eletrônicos em sua capacidade de fascinar. Havia pouca coisa na tela que surpreendesse, que evocasse o espanto no coração de um adulto que já explorou uma construção dos Forerunners, já visitou a grandiosa Vivec, já viu o Sol nascendo sobre Faranga ou penetrou na Zona. A paisagem da Grade hipnotiza por um breve período de tempo e não se fixa na retina. Não há nada novo, não há nada ousado. É uma beleza que se esconde atrás do que já foi feito anteriormente.

Aquilo que marcou minha vida e apontou caminhos para um futuro digital perdeu sua capacidade de surpreender ou inspirar. Aqueles visionários do passado criaram uma tecnologia que não existia, imaginaram um universo que não existia. Eles ousaram. Caminhando sobre passos já dados, os criadores de Legacy capturaram tudo que havia no original com respeito, mas se esqueceram de seu dever de casa, de sua essência rebelde e de oferecer um novo futuro.

Em um ponto em que os jogos eletrônicos se aproximam do fotorrealismo máximo, se faz necessário que alguém apareça e diga em bom tom: "desprendam-se!". Desprendam-se da realidade! Com ferramentas capazes de criar mundos por que se ater aquilo que conhecemos, aquilo que já foi visto ou feito? Em 1982, eles mostraram algo jamais visto. Em 2010, eles perderam a oportunidade.

(minha esposa disse que ouviu um garoto de dez anos exclamar durante o filme: "que maneiro!". Então, esqueça tudo o que foi escrito. O bastão foi passado, um novo clássico nasceu. E a trilha sonora sozinha já valeu a tarde.)

daft-punk-tron-legacy

Ouvindo: The Moscow Symphony Orchestra - World of Temples

5 comentários:

Marcel C. Da Silva disse...

Eu ainda era uma criança quando me perdi no mundo de Tron(ainda que fosse no jogo pra pc) e esse filme me despertou muita curiosidade e ainda não tive tempo de assistí-lo, seja por falta de tempo ou mesmo pelo fato de ter "Disney" assinado embaixo.Não me surpreende que o universo de Tron não surpreenda, é difícil imaginar algo realmente novo e inovador considerando na época que vivemos, meu pai me falou(sim ele viu a versão de Tron de 1982 mesmo não sendo criança) que em 1982 mal se falava em pc's com placa com circuitos, e Tron revolucionou por isso e tantas outras coisas que eu nunca imaginaria se fosse depender de mim, mas pelo o que indica, essa continuação parece ter feito seu trabalho.

Marcos A. S. Almeida disse...

"O passado é lição para refletir, não para repetir."
( Mário de Andrade )

José Guilherme Wasner Machado disse...

Aquino, desculpe o off-topic (isso está virando um costume!), mas acho que essa notícia vai te interessar!

http://www.gamesradar.com/pc/gothic-3/news/gothic-publisher-jowood-entertainment-files-for-bankruptcy/a-2011011118313994012/g-2006032714313970060

Ainda bem que é a JoWood, e não a Piranha...

Abração!

Marcos A. S. Almeida disse...

Recentemente (e finalmente) vi Tron:O Legado.Realmente não é revolucionário ( pouquíssimas coisas são revolucionárias hoje em dia), têm uma história ultra clichê , com atuações razoáveis até porque o filme não exige mais do que isto,e um personagem altamente caricato , Castor,que mais parece uma tentativa - inútil - de imitar os trejeitos de Jim Carrey.Fiquei com a impressão que ele estava desesperadamente tentando agarrar seu minuto de fama.Depois de tantos pontos negativos existe algo positivo?Sim , os cenários, os efeitos e a trilha sonora , feita pelo Daft Punk.Tudo bem que praticamente toda a trilha é feita em cima de uma única música , com todas as variações possíveis, mas ainda assim é ótima!E achei incrível e realista a recriação do Jeff Bridges do primeiro filme.Não é um clássico , mas também não é de quinta.Por tudo que frisei de positivo, vale a pena ser visto e revisto - aliás, foi o que fiz!

C. Aquino disse...

Ainda preciso fazer as pazes com Legacy..., mas parece que já vem uma série de animação por aí e até uma continuação. Agora, vai começar o caça-níquel!

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Blog criado e mantido por C. Aquino

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